31 outubro 2018

sobre os brasileiros que vivem em Portugal e votaram Bolsonero, fazendo um pequeno desvio pelo caso dos turcos-alemães

"Que vão para a terra deles!", dizem em Portugal algumas pessoas, chocadas com a quantidade de imigrantes brasileiros em Portugal que escolheram Bolsonero.

Antes de mais: "que vão para a terra deles!" é retórica à maneira do Bolçário. Se os queremos criticar, não podemos ter tiques iguais.

Na Alemanha, os turcos provocam choques idênticos: entre os que votam, a maioria é a favor de Erdogan; no referendo sobre a mudança da Constituição, o número de votos "sim" na Alemanha foi superior aos da própria Turquia. A AfD aproveita para meter o seu veneno ("esta gente nunca será capaz de se integrar no nosso país"), os partidos decentes optam por um discurso bem mais cuidadoso e democrático. E o país pergunta-se o que falhou para que as famílias dos imigrantes não tenham aderido aos valores mais básicos desta sociedade. Por sua vez, muitas pessoas na Turquia criticam os turcos-alemães por viverem descansadamente em liberdade e democracia mas usarem o voto para imporem aos seus compatriotas a autocracia, a perseguição política e o caos económico.

Alguns jornais adiantaram explicações para o fenómeno que permitiram passar para além da reacção primária "não queremos cá uma 5ª coluna, vão para a vossa terra!". Em primeiro lugar, convém não esquecer algo importante: só metade dos turcos ou seus descendentes que vivem na Alemanha é que vota, e quase metade dos que votam não escolhe Erdogan. Não se pode generalizar desta parte relativamente pequena para o todo.
Quanto aos que escolhem Erdogan: muitos turcos na Alemanha vivem num contexto de indesejados e desprezados, o que pode criar neles a necessidade de terem no seu país um "homem forte" para contrabalançar as humilhações quotidianas. Além disso, o modo como na Alemanha se fala do Erdogan pode ser sentido como ofensa pelos turcos que aqui vivem - com ou sem razão, ninguém gosta que se critique assim o seu país. É natural que num país democrático se critique abertamente um governante que conduz o seu país para a ditadura, mas essa crítica ressoa de forma diferente na minoria nacional, que a sente como mais um ataque e falta de respeito, a somar a todas as outras humilhações de que são vítimas.

[ Que humilhações?, perguntarão. Uma lista pouco exaustiva vai desde o facto de um apelido turco ser um entrave para alugar casa, arranjar emprego e subir na carreira profissional, passando pelo fenómeno de as famílias de língua materna alemã evitarem pôr os seus filhos nas escolas onde há muitos filhos de turcos, até ao terrível escândalo de ter havido um bando de neonazis que durante uma década andou pelo país a matar turcos ao acaso, e a polícia alemã ter conduzido os inquéritos - a que chamou "assassinatos Dönner"! - convencida de que se tratava de meros ajustes de contas de uma qualquer máfia turca. ]    

Voltando a Portugal, e aos brasileiros que aqui vivem: quantas pessoas votaram Bolsotário? Esse número corresponde a que percentagem da população brasileira em Portugal? Provavelmente não passará de 15% do total, mas em Portugal instalou-se a ideia de que a grande maioria dos brasileiros que aqui vivem é apoiante de Bolsalário.

Igualmente importante: quantos desses votos não serão um sintoma de mal-estar por se sentirem de certo modo rejeitados pela sociedade portuguesa?

Levando esta ideia um pouco mais longe: Portugal tem feito muito para aprofundar a consciência democrática, mas - como aliás em todos os países - os valores e a prática da Democracia não estão naturalizados de forma homogénea na sociedade. Por serem estrangeiros e um grupo minoritário, os imigrantes estão expostos com mais frequência e mais virulência a episódios resultantes da falta de cultura democrática de alguns portugueses. Sendo assim, o argumento "vivem em Democracia, mas não aprenderam nada!" não colhe, porque o que os imigrantes vivem todos os dias é bem diferente da Democracia que pensamos ter.

Disso é exemplo mais recente e alarmante a frase "vai para a tua terra!", que tanto temos ouvido em Portugal por estes dias.

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Estou a tentar não escrever o nome certo do Bostanaro para não dar esse prazer a quem faz estatísticas do número de ocorrências na net. O mais engraçado é que depois de inventar três ou quatro nomes me esqueci do nome dele. O único que me ocorre, quando pretendo acertar, é Bolsonário - mas o meu favorito é Bolsonero.

3 comentários:

Marçal disse...

Eu quase bolço o Nharro, mas penso que falta ainda pelo menos um aspecto importante à tua justa análise.
Do meu ponto de vista e no tocante em particular aos brasileiros imigrados em Lisboa (que é a única realidade que conheço), creio que o seu apoio maioritário ao fulano que ganhou as eleições no Brasil se deve essencialmente a uma enorme ilusão, que é a de que o Brasil poderá ver-se livre da violência com ele e tornar-se um País civilizado e seguro como aquele onde eles agora vivem e trabalham.
São estas considerações que têm mais força no pensar das pessoas e não tanto as questões mais teóricas e ideológicas de índole política: ninguém está preocupado com a Democracia no Brasil quando se vive e trabalha num País livre e democrático. O que preocupa mesmo estas pessoas é o horrível clima de insegurança que se instalou no Brasil e que eles julgam poder ser agora resolvido, pela força e determinação deste jogral mafioso. Puro engano, claro, mas só o irão descobrir tarde demais.
Mas a mim interessa-me perceber isto, para não cometer o erro de julgar que os que agora cantaram vitória são maioritariamente facínoras, ou mesmo fascistas, o que não me parece de todo credível (sem prejuízo de poderem andar imensos facínoras e fascistas a festejar).
E penso que só percebendo este fenómeno se pode começar a desfocar a atenção da questão mais ideológica, que é secundária, e a concentrar a acção nas questões reais e que mais interessam à generalidade das pessoas, como é o caso da corrupção e da segurança. E se não percebermos que o problema não é os brasileiros serem fascistas, mas terem medo da violência urbana, nunca poderemos querer que eles percebam que o problema da violência urbana não resulta da Democracia, ou do assistencialismo do Estado, mas precisamente da desigualdade social em que o Brasil vive há décadas e que o PT se esforçou por começar a combater.

Helena Araújo disse...

Obrigada pelo contributo!

Marçal disse...

Infelizmente, a Democracia e a Liberdade são assim como a Saúde: muita gente só lhes dá o seu verdadeiro valor quando as perde...