Para quem não sabe como era, aqui vai a tradução (apressada, e resumindo):
I.
Eleições na RDA: folha dobrada, boca calada
Siegfried Wittenburg conta na primeira pessoa:
A ordem de Walter Ulbricht (que instalou o estalinismo na zona da Alemanha ocupada pela URSS e construiu o muro) era: "tem de parecer democrático, mas temos de controlar tudo".
A ordem de Walter Ulbricht (que instalou o estalinismo na zona da Alemanha ocupada pela URSS e construiu o muro) era: "tem de parecer democrático, mas temos de controlar tudo".
Os chefes das lojas estatais tinham a incumbência de decorar as montras com material de propaganda.
No prédio onde morava com a minha mulher, os vizinhos foram convocados pelo chefe da comunidade de vizinhos (que era ao mesmo tempo polícia e responsável pela área) para serem informados sobre as bandeiras que deviam pôr às janelas. As janelas do prédio já tinham os necessários suportes. Era desagradável receber de um polícia ordens para mostrar tanta fidelidade ao regime, mas desobedecer seria um sinal que não convinha dar.
O chefe da comunidade também sugeriu que fossem todos juntos votar às 10 da manhã desse domingo, e quase todos os vizinhos se apressaram a levantar a mão em sinal de concordância.
Na sexta-feira antes das eleições, uns minutos antes de terminarmos o trabalho o responsável perguntou a cada um dos colegas: "vais votar no domingo?" Responder com um "não" teria consequências muito desagradáveis.
Ao longo de várias décadas os resultados anunciados entusiasticamente na segunda-feira seguinte eram sempre os mesmos: a população da RDA tinha votado quase unanimemente a favor da paz
e do socialismo. Os votos a favor teriam sido superiores a 99,8%. E só não eram 100% por causa de cidadãos como o meu pai, que se recusavam a ir votar. Muitos deles eram demasiado importantes para o sistema de produção, outros eram reformados que estavam a pensar ir para a Alemanha ocidental. Ignorá-los seria uma falsificação das eleições demasiado óbvia.
As assembleias de voto abriam às 8 da manhã. A população estava educada para ir votar até ao meio-dia. À tarde, fartos de esperar pelos 0,2% de eleitores que não apareciam, os ajudantes agarravam nas urnas e iam a casa desses eleitores renitentes pedir-lhes o voto.
Também eu e a minha mulher fomos votar de manhã, embora tivéssemos evitado ir em grupo com os vizinhos. Na sala havia cinco mesas. Na primeira entregávamos a folha com a convocatória para as eleições, na segunda mostrávamos os bilhetes de identidade e o funcionário fazia uma anotação, na terceira davam-nos a folha de voto com o candidato da Frente Nacional e na quarta mesa havia um funcionário que esperava sorridente até dobrarmos a folha e a metermos na urna. Por trás da quinta mesa sentavam-se dois homens extraordinariamente discretos.
Não era possível fazer uma cruz no nosso candidato favorito. Dobrava-se o boletim de voto e deitava-se na urna. Esse era o voto a favor. Para votar contra, era preciso riscar o nome do candidato. Olhei pela sala em busca da cabine. Estava a um canto, e era óbvio que os homens da quinta mesa escreveriam o nome de todas as pessoas que se aproximassem dela.
Na segunda-feira seguinte foram anunciados os resultados previamente preparados. Algumas semanas mais tarde soube-se que um jovem tinha usado a cabine antes de deitar o seu boletim de voto na urna. Todos o conheciam, e sabiam que o único voto contra que tinha sido contado era o dele. Alguns diziam "Típico! Nele, não me admira nada!"
II.
Queda do muro 1989: imagina que há eleições, e ninguém vai votar!
Thomas Gerlach conta na primeira pessoa:
Naquele 7 de Maio de 1989 Leipzig estava coberta com bandeiras, e por todos os lados havia cartazes a apelar ao voto no candidato da Frente Nacional. Era dia de eleições, as assembleias de voto estavam abertas desde as seis da manhã e o primeiro eleitor a chegar recebia um ramo de flores. Mas bem podia poupar o trabalho, porque os resultados já estavam decididos há meses. Em surdina, chamava-se "dobrar folhas" a este ritual de submissão que servia sobretudo para acalmar o SED: quem ao domingo punha o seu voto na urna não ia fazer tumultos na segunda-feira.
Era assim há décadas - mas desta vez seria diferente. Havia grupos da oposição organizados para observar as assembleias de voto. Corriam rumores de que na véspera iria haver uma manifestação. Uns dias antes o meu amigo Bernd, temendo estar a ser seguido pela Stasi, veio ao meu apartamento para queimar folhetos que tinha feito e espalhado na sua região: "imagina que há eleições, e ninguém vai votar!"
Eu já não votava. Como estudante de teologia, já tinha sido classificado como parte das forças inimigas-negativas. Mas às duas da tarde a polícia bateu-me à porta. Queria saber de um amigo meu que pertencia à oposição em Leipzig e já estivera preso alguns meses antes. Disse-lhes que não sabia de nada, e eles desapareceram imediatamente.
Às três da tarde saí com a minha câmara fotográfica. Queria avisar o meu amigo. Os polícias abordaram-me no eléctrico e levaram-me com eles. Seriam provavelmente da Stasi de Berlim. Não conheciam Leipzig, pareciam turistas a perguntar direcções às pessoas.
A meio do interrogatório deram-me um café.
(...)
No fim, apresentaram-me os papéis para assinar. Recusei. Tentaram um truque: "ao menos assine para confirmar que recebeu um café". "Não". "Será que tenho de pagar o seu café do meu bolso? Com gente assim é impossível dialogar!"
O polícia acrescentou ao texto: "O senhor Gerlach confirma a correcção das declarações que fez, mas não assina porque não quer." Depois de algumas horas de espera fui levado com muitos outros da prisão para uma escola. Na "minha" sala havia 15 prisioneiros. O ambiente era descontraído.
Tinha havido realmente uma manifestação em Leipzig, e a polícia tinha prendido dúzias de pessoas - talvez até mais de cem.
Os primeiros a rebelar-se foram os fumadores. Os guardas não sabiam o que fazer, e acabaram por deixá-los fumar no corredor, um de cada vez. A seguir, outros protestaram por terem fome. Depois da meia-noite uns diziam que queriam ir dormir na sua cama, outros queriam ir ter com a sua mulher. Um escreveu no quadro "deixem-me sair!" Os guardas apagaram a luz.
(...)
Um a um foram libertando todos. A meio do dia seguinte também eu pude sair, apesar de recusar assinar a declaração de que doravante não boicotaria a comunidade socialista nem poria em risco a ordem e a segurança.
Nesse dia o SED anunciava que a Frente Nacional tinha tido 98,85% dos votos.
O que não revelava: tinha sido o pior resultado de sempre, milhares de cidadãos tinham contado de novo os votos e acusado o regime de falseamento sistemático, e em Berlim e Leipzig centenas de pessoas manifestaram-se contra a farsa eleitoral.
O que nesse dia ninguém podia saber: esta foi a última vez que "dobraram folhas" na RDA. Dez meses e uma revolução mais tarde, a 18 de Março de 1990, o SED foi afastado do poder.
Naquele 7 de Maio de 1989 Leipzig estava coberta com bandeiras, e por todos os lados havia cartazes a apelar ao voto no candidato da Frente Nacional. Era dia de eleições, as assembleias de voto estavam abertas desde as seis da manhã e o primeiro eleitor a chegar recebia um ramo de flores. Mas bem podia poupar o trabalho, porque os resultados já estavam decididos há meses. Em surdina, chamava-se "dobrar folhas" a este ritual de submissão que servia sobretudo para acalmar o SED: quem ao domingo punha o seu voto na urna não ia fazer tumultos na segunda-feira.
Era assim há décadas - mas desta vez seria diferente. Havia grupos da oposição organizados para observar as assembleias de voto. Corriam rumores de que na véspera iria haver uma manifestação. Uns dias antes o meu amigo Bernd, temendo estar a ser seguido pela Stasi, veio ao meu apartamento para queimar folhetos que tinha feito e espalhado na sua região: "imagina que há eleições, e ninguém vai votar!"
Eu já não votava. Como estudante de teologia, já tinha sido classificado como parte das forças inimigas-negativas. Mas às duas da tarde a polícia bateu-me à porta. Queria saber de um amigo meu que pertencia à oposição em Leipzig e já estivera preso alguns meses antes. Disse-lhes que não sabia de nada, e eles desapareceram imediatamente.
Às três da tarde saí com a minha câmara fotográfica. Queria avisar o meu amigo. Os polícias abordaram-me no eléctrico e levaram-me com eles. Seriam provavelmente da Stasi de Berlim. Não conheciam Leipzig, pareciam turistas a perguntar direcções às pessoas.
A meio do interrogatório deram-me um café.
(...)
No fim, apresentaram-me os papéis para assinar. Recusei. Tentaram um truque: "ao menos assine para confirmar que recebeu um café". "Não". "Será que tenho de pagar o seu café do meu bolso? Com gente assim é impossível dialogar!"
O polícia acrescentou ao texto: "O senhor Gerlach confirma a correcção das declarações que fez, mas não assina porque não quer." Depois de algumas horas de espera fui levado com muitos outros da prisão para uma escola. Na "minha" sala havia 15 prisioneiros. O ambiente era descontraído.
Tinha havido realmente uma manifestação em Leipzig, e a polícia tinha prendido dúzias de pessoas - talvez até mais de cem.
Os primeiros a rebelar-se foram os fumadores. Os guardas não sabiam o que fazer, e acabaram por deixá-los fumar no corredor, um de cada vez. A seguir, outros protestaram por terem fome. Depois da meia-noite uns diziam que queriam ir dormir na sua cama, outros queriam ir ter com a sua mulher. Um escreveu no quadro "deixem-me sair!" Os guardas apagaram a luz.
(...)
Um a um foram libertando todos. A meio do dia seguinte também eu pude sair, apesar de recusar assinar a declaração de que doravante não boicotaria a comunidade socialista nem poria em risco a ordem e a segurança.
Nesse dia o SED anunciava que a Frente Nacional tinha tido 98,85% dos votos.
O que não revelava: tinha sido o pior resultado de sempre, milhares de cidadãos tinham contado de novo os votos e acusado o regime de falseamento sistemático, e em Berlim e Leipzig centenas de pessoas manifestaram-se contra a farsa eleitoral.
O que nesse dia ninguém podia saber: esta foi a última vez que "dobraram folhas" na RDA. Dez meses e uma revolução mais tarde, a 18 de Março de 1990, o SED foi afastado do poder.
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