Há muitos, muitos anos - a minha filha não tinha nem dois anos e o meu filho não tinha nem 10 cm - fizemos férias de ski com um casal amigo.
A meio dessa semana, estava eu em casa calmamente a dar o almoço à miúda, quando o nosso amigo entrou de rompante, fez a mala a correr e saiu desaustinado. Bem-educada, ofereci-lhe um prato de sopa, mas ele não tinha tempo. Estava a fugir.
Daí a bocado chegaram o Joachim e a nossa amiga. Contaram que iam a subir a encosta num daqueles elevadores com lugares duplos, e ele de repente se virou e começou a descer a montanha a toda a velocidade.
No fim da semana voltámos todos para casa, e logo a seguir a nossa amiga ligou-nos a contar, muito surpreendida, que ele saíra de casa, levara as suas coisas, e deixara uma carta de várias páginas a dizer porque é que não aguentava mais aquela relação.
Nas semanas seguintes ela continuou à espera que ele voltasse. Quando eu lhe lembrava o modo como fugiu e a carta que deixou, ela afastava os meus argumentos com um movimento de mão que sacode moscas e dizia:
- Ele não é assim. Tenho a certeza que aquilo que escreveu não é o que pensa realmente.
Uns meses mais tarde ela mudou para outra cidade, e telefonava-me todas as semanas para, como me anunciava sempre, "fazer o relatório". Eu ouvia pacientemente enquanto ela ia debitando as linhas da sua agenda uma a uma, e metia aquela hora interminável na rubrica "os amigos também são para ouvir os relatórios, quando é preciso".
Até que um dia ela telefonou, me perguntou como sempre fazia "então, como estás?" e eu dessa vez respondi "estou à rasca, o meu mundo está a desmoronar-se à minha volta", e contei. No fim, ela disse:
- Ui, que coisas horríveis! Deixa-nos falar de algo mais agradável. Na minha varanda as roseiras já estão a florir, esta semana chegaram as cadeiras de esplanada francesas que encomendei há tempos, e comprei uns pés de tomate que estão muito promissores...
E eu:
- Desculpa, mas não quero falar mais. Adeus.
Nunca mais lhe falei. Ela perguntava porque deixei de lhe atender os telefonemas, e eu respondia: "porque não quero falar contigo, apenas isso."
Outros também me perguntavam porque é que não lhe explicava o que se tinha passado, porquê essa recusa em dar satisfações.
Mas o que é que se pode explicar a pessoas que lêem "ISTO!" escrito com todas as letras, e decidem: "ah, não, ele não queria dizer isso que disse..."?
Que inteligência e racionalidade, que diálogo é possível com pessoas que ouvem "É ISTO QUE VOU FAZER!" - dito com todas as letras, com toda a clareza - e decidem: "ah, não, não acredito que ele faça isso..."?
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