03 maio 2018

mundos paralelos

Numa das aulas a que fui no City College, em San Francisco, a professora deu-nos a ler uma notícia de um jornal da Bay Area sobre uma autarquia que premiava actos de humanidade. Enquanto líamos, o meu colega de carteira e eu desatámos a cochichar e a rir em surdina. É que os exemplos dados pelo jornal eram de uma banalidade atroz: o empregado do supermercado que levava as compras ao carro da velhinha, o farmacêutico que verificava se o que o cliente estava a comprar fazia realmente sentido. 

Depois a professora pediu que conversássemos com o colega do lado para contar casos semelhantes a que tivéssemos assistido. Eu contei ao meu colega a história daquele dia em que a Christina teve uma gastroenterite desgraçada, e depois de lhe mudar a cama cinco vezes eu própria fiquei tão apanhada que não conseguia tratar do Matthias, que tinha seis meses. Telefonei a uma amiga pedindo que viesse buscar o Matthias, e ela, a proa de uma família monoparental com quatro filhos, largou as compras e as limpezas desse sábado para vir buscar o bebé, e decidiu levar os dois - apesar de saber que corria o risco de apanhar a gastroenterite da Christina (como apanhou). Por seu lado, o meu colega, que vinha de um país africano, contou da sua aldeia, de quando morreu a mãe de uma família numerosa e uma vizinha começou a cozinhar também para os órfãos.

Quando os outros começaram a contar as suas histórias, nós trocávamos olhares trocistas. Havia quem não tivesse nada para contar, e havia pessoas que só tinham histórias do género "no autocarro, uma pessoa ofereceu o seu lugar a um velhinho"

Lembrei-me desta história ao ver hoje um vídeo do Upworthy sobre o projecto "I'll be there": um movimento para inspirar pessoas para sairem da sua concha e irem ao encontro de outros seres humanos por meio de gestos simples de gentileza. Por exemplo: pagar o café da pessoa que está atrás na fila da caixa, oferecer uma flor, abrir a porta para quem vem a seguir. Gestos simples e intencionais de conexão com os outros.

Ora bem: devo viver num mundo paralelo. No meu tempo, a "gestos simpes e intencionais de conexão com os outros" chamava-se "regras básicas e elementares de boa educação". Não se ia ao ponto de oferecer flores a pessoas sentadas numa esplanada, ou café a pessoas na fila da caixa, mas era normal manter a porta aberta para quem vem atrás de nós, apanhar algo que outra pessoa deixou cair, ajudar a carregar coisas pesadas. Em suma: estar atento a quem se cruza no nosso caminho e ajudar no que for preciso são atitudes tão elementares de boa educação que nem deviam ser dignas de registo.

Que seja preciso "inspirar pessoas para saírem da sua concha e estarem atentas aos outros" e criar prémios autárquicos para cidadãos que se destacam pelas suas atitudes de gentileza são sinais assustadores de um mundo de pessoas a viver em solidão.

O movimento "I'll be There" interessa-se também pelas pessoas que vivem a mais terrível das solidões nas nossas cidades: a daqueles que, por não querermos ver, arrumamos num mundo paralelo muito distante do nosso. Os sem-abrigo, as prostitutas, os pobres explorados pela máfia dos pedintes - por exemplo.

Na semana passada o meu coro apresentou uma composição de Justin Lépany sobre esta solidão. Uma obra cheia de raiva e desprezo por nós, que partilhamos a rua com pessoas em profunda solidão e não as vemos. O maestro insistiu que fizéssemos os FFFFF (fungadelas) e os SCH e TSSS (semelhantes aos nossos "PSSSST!" e "PFFFFF!") à maneira sacudida e agressiva dos berlinenses, revirando os olhos e fazendo ar de despeito.

(Das duas, uma: ou mudo de vida, ou mudo de coro...)

 

Tradução do texto:

Estou aqui mesmo à tua frente
não me vês?
Pssst! FFFF!
Não me vês?
Pssst! FFFF!
Faça o que fizer,
tu não me vês.
Pssst! Pffff!
És doente? És cego?
Estou aqui, mesmo à tua frente.
Doente! Pffff! Cego! Pffff!
Aqui mesmo, à tua frente. Pffff!
Faça o que fizer, não me vês.
Ouve! Ouve! Pssst!
Ouve! Ouve! Pssst!
Por todos os lados gritas por mais
TOLERÂNCIA!
bla bla bla Pssst! Pffff!
EMPENHO!
bla bla bla Pssst! Pffff!
INDIGNAÇÃO!
bla bla bla Pssst! Pffff!
CORAGEM!
bla bla bla Pssst! Pffff!
Mas para ti não existo!
Demasiado feio! Pssst!
Demasiado sujo! Pssst!
Demasiado miserável! Pssst!
Demasiadoembaraçoso! Pssst!
Demasiado diferente! Pssst!
Demasiado real! Pssst!
Falas, e não me vês!
Desperta! Desperta! Desperta! Desperta!
Em breve morrerás, triste e infeliz como um idiota.
Idiota, idiota, FFFF, idiota, FFFF, idiota, FFFF, idiota.
FFFFFFFF.

3 comentários:

flor disse...

gostei tanto de ler este texto. obrigada, Helena.

Susana Rodrigues disse...

Também eu. Gostei tanto quando o li, que agora mesmo cá voltei para o ler em voz alta às minhas filhas. (A propósito de pessoas que nos inspiram)
Obrigada eu também, Helena.

Helena Araújo disse...

Nem sei que dizer! :)