02 abril 2018

em 2018, a minha Páscoa foi assim (mais coisa menos coisa)

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Na sexta-feira santa fomos à celebração na igreja da Academia Católica. Na homilia, o padre mostrou um pintainho de plástico (um desses objectos decorativos muito queridinhos desta época) para acusar um dos pecados do nosso tempo: a brutalidade com que milhões de pintainhos machos são trucidados vivos, apenas porque não porão ovos nem darão muita carne.
No momento da adoração da cruz fomos convidados a pousar nela uma rosa simbolizando os sofrimentos que carregamos connosco. No fim da celebração, o padre disse-nos para levarmos uma das rosas para casa, mas não aquela que pusemos na cruz. E citou um ditado alemão para explicar: "sofrimento partilhado é sofrimento aliviado".
Não sei se é bem assim, mas gostei de trazer para casa as dores de outros, e deixar as minhas entregues a quem quiser tomar conta delas.

Vivemos tempos estranhos: na mesma celebração em que se fala de pintainhos trucidados, são distribuídas dezenas de rosas que vieram certamente de África, carregadas de químicos que provocam cancro aos desgraçados que trabalham nas plantações por um salário miserável.
Vivemos cercados de ignomínia.

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No sábado voltei à Filarmonia: Debussy, dois pianos, Argerich e Barenboim. Gostei especialmente do "Prélude à l'après midi d'un faune", e destes "Seis estudos em forma canónica", de Schumann com arranjo de Debussy para dois pianos:


Também gostei muito de outra das peças de Debussy, Six épigraphes antiques, e dos seus nomes:
1. Pour invoquer Pan, dieu du vent d'été
2. Pour un tombeau sans nom
3. Pour que la nuit soit propice
4. Pour la danseuse aux crotales
5. Pour l' Égyptienne
6. Pour remercier la pluie au matin



Enquanto ouvia Debussy e ia lendo o nome das peças não pude deixar de me lembrar desta síntese dos movimentos artísticos (reparem no nome, no caso do Impressionismo):



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No sábado fomos à missa da vigília pascal na comunidade católica de língua portuguesa. No final, o padre anunciou que haveria compasso no domingo e na segunda-feira. "Uma tradição dos nossos amigos portugueses", acrescentou.
Compasso em Berlim...
Lembrei-me do compasso na aldeia minhota da minha infância: as casas esfregadas por dentro e por fora, as mesas ajoujadas de petiscos, as roupas novas para estrear na Páscoa, os caminhos limpos de ervas e adornados com pétalas de flores - e sobretudo a alegria desse enorme acontecimento social, as visitas mútuas em toda a aldeia. Pensei que a visita do padre às casas dos paroquianos, na Páscoa berlinense, não implicará esse burburinho feliz entre vizinhos e amigos num dia de portas abertas para todos. E foi então que me ocorreu que se voltasse hoje à aldeia onde fui feliz as portas já não se abririam para mim da mesma maneira. De forma quase dolorosa, registei o atrofiamento das raízes: essa terra já não é a minha.


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Pouco depois de o ateu Stephen Hawking ter morrido, a Páscoa calhou no dia das mentiras.
Tsss tsss tsss, ainda agora chegou ao outro lado, e já anda a subverter tudo...

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O Joachim apanhou-me desprevenida ao pequeno-almoço e aproveitou para me dar mais uma desanda de "tens de fazer desporto". Que o coração precisa de treino, qe se não faço desporto quando chegar aos cem anos vou ficar ofegante para subir meia dúzia de degraus, coisas assim. Disse-lhe "então para ter qualidade de vida aos cem anos vou ter de passar os próximos 45 anos a sofrer?!" (obrigadinha, fumadores, a vossa lógica é imbatível)

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Almoço de Páscoa com os miúdos.
Dei comigo a sentir falta de ter gente pequenina em casa, para lhes esconder ovos no jardim.
(Não me digam que há uma espécie de relógio biológico para se tornar avó?!)

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Na segunda-feira de Páscoa, no momento em que estava a sair com o Fox para o passeio matinal, o telefone tocou. Era a professora de zumba, que me dá boleia para as aulas. Tinha-me esquecido completamente. Tentei dar desculpas (afinal de contas, o dia da tortura é sexta-feira santa, e já era segunda!) mas depois lembrei-me da figura que vou fazer quando tiver cem anos, e fui.
Agora estou toda partida, e cheia de dúvidas sobre a minha lógica: para não fazer má figura aos cem anos, faço-a agora todas as semanas em frente ao espelho do estúdio.
É que já não dançava zumba há séculos, e dei-me conta de que tenho o corpo e o cérebro enferrujados. Sim: já não consigo descodificar os movimentos da professora e transmiti-los ao meu corpo, para fazer o mesmo em tempo útil.


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