30 março 2018

"martírio" (2)

Esta manhã, Frederico Lourenço escreveu no facebook:

"De alguma forma, a imagem da crucificação de Jesus propõe à nossa consideração uma espécie de sinédoque visual do sofrimento humano: é a parte abarcável que nos põe em confronto com um todo inabarcável – pois desse todo fazem parte as masmorras da Inquisição, da Gestapo e da KGB; dele fazem parte genocídios de povos inteiros; dele fazem parte as tragédias de hoje na Síria e no Iraque; dele fazem parte toda a fealdade hedionda do ser humano.

Pensarmos, pois, com toda a nossa compaixão no homem de Nazaré pregado na cruz é, assim, uma pequena tentativa de abarcarmos o inabarcável. É darmos um nome a um sofrimento que é global, milenar e anónimo."


Este texto serve bem para explicar porque é que o símbolo do cristianismo tinha de ser uma cruz. Mas o meu problema com "a compaixão no homem de Nazaré pregado na cruz" é o risco de esquecermos todos os outros, e todas as outras cruzes.

Repito o post que publiquei há um ano na Enciclopédia Ilustrada:


 (fonte)

Um refugiado amigo do meu filho contou-lhe alguns dos momentos terríveis que passou na Turíngia. Por exemplo: estar fechado numa casa cercada por neonazis enfurecidos. Ou não poder sair à noite nem para ir à bomba de gasolina mais próxima, porque havia grupos de neonazis à espera, para dar uma tareia a algum refugiado que saísse do centro para ir à loja de conveniência.

Acompanho as estatísticas dos ataques a refugiados na Alemanha, sei que este ano - e ainda só vamos no quarto mês - já houve 9 ataques incendiários a centros de refugiados, e 15 casos de violência com danos corporais. Mas uma coisa é conhecer os números, e outra coisa é sentir o medo, o pavor de se saber cercado por brutamontes que alimentam a sua violência com ódio xenófobo. Tenho ideia do que será esse medo: uma vez assisti a uma marcha de 200 neonazis ao lado da minha casa. Estava a algumas dezenas de metros deles, numa perpendicular da rua em que desfilavam, e não era o objecto directo do seu ódio. Mesmo assim, senti um medo terrível. Ontem, quando o meu filho contava as histórias do seu amigo, lembrei-me dos urros que ouvi nesse desfile, e por uns momentos estive dentro da pele daquele homem. Como é que os refugiados aguentam estas tensões? E como é que aguentam viver sem condições mínimas, durante meses e anos à espera de uma decisão do Estado sobre a sua permanência neste país ou o repatriamento? Como é que aguentam a decisão de serem repatriados - para o Afeganistão, por exemplo - porque o seu país não é considerado "assim tão perigoso"? 

Sei, de outros amigos dos meus filhos que já aprenderam alemão e arranjaram um bom trabalho, como é o choque ao receber a carta que os obriga a regressar ao seu país. No lugar deles, tentaria todos os esquemas possíveis para ir ficando. Tanto mais que são tratados como meros peões no difícil jogo político de cedências e equilíbrios possíveis.

Hoje é Sexta-feira Santa. Falamos tanto do sofrimento de Jesus Cristo, e esquecemos tão facilmente o sofrimento horroroso, o medo, a angústia, o desespero destes que precisam da nossa ajuda. Fui à igreja, ouvi o padre na homilia mencionar o martírio de Jesus, e citar o pedagogo Pestalozzi, que terá dito que o sofrimento tanto pode elevar o ser humano como pode torná-lo selvagem. Fiquei a pensar que há algo de hipócrita no modo como acusamos aqueles que acabam transtornados pelos sofrimento. Como se esse sofrimento fosse inteiramente alheio à nossa vontade e responsabilidade. Falo das armas das quais eles fogem, tantas delas fabricadas e vendidas por empresas europeias. Falo dos conflitos dos quais eles fogem, em grande parte causados por uma gestão egoísta e arrogante dos nossos interesses. Falo do ódio e do racismo com que se deparam ao chegar à Europa, e falo do comodismo com que viramos costas e ignoramos o seu martírio. É muito mais fácil chegar à Semana Santa e pensar no que Jesus sofreu, vai para 2000 anos, para a redenção dos nossos pecados...


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