12 fevereiro 2018

"pichagem"


#Pichagem com risco de vida.
Durante o período nazi houve em Berlim, entre muitos outros, um grupo de resistência chamado “Onkel Emil” (tio Emílio), que incluía vários médicos (um deles seria mais tarde chefe da Ginecologia no Charité, e obrigado a tomar decisões difíceis sobre interrupção da gravidez – o que era proibido – de mulheres violadas pelos soldados soviéticos) e o maestro Leo Borchard (que seria o primeiro maestro dos Filarmónicos de Berlim após a guerra, e morreria duas semanas após a sua nomeação, devido a um estúpido mal-entendido: tinha ido jantar a casa de um oficial inglês, este estava a levá-lo a casa, no meio da conversa sobre Bach não reagiu de forma adequada a um sinal de um soldado americano, e este disparou para os ocupantes do carro, matando o músico).
Adiante.
Uma das acções do grupo foi espalhar pela cidade de Berlim a palavra “Nein” (não) pouco antes do fim da guerra.

Traduzo (muitíssimo rapidamente) algumas das passagens do diário de Ruth Andreas-Friedrich, que também fazia parte do grupo:

“Berlim, terça-feira, 17 de Abril de 1945
Na Berlim bombardeada não é fácil formular determinados desejos de consumo. Especialmente nos casos em que é preciso que o desejo seja imediatamente satisfeito. A resposta habitual “volte daqui a duas semanas”, quando procuramos desesperadamente produtos para pintar, deixa-nos doidos. Finalmente, numa pequena rua lateral, encontra-se o que se queria. Uma rapariguinha melancólica pousa no balcão três caixas do melhor giz para pintar. “Que estranho”, diz ela pensativamente, “trabalho aqui há cinco anos. E nunca vendi tanto giz como hoje. É a sétima pessoa que mo vem comprar.” – “Que estranho... de facto...”, respondo eu e desapareço rapidamente da loja. Coincidências sem importância podem deitar a perder grandes projectos!
Em casa apreciámos o saque. Frank tinha o melhor de tudo: quatro latas cheias de tinta de óleo vermelha. “Roubei no armazém de uma empresa de propaganda”, contou-nos. “Penso que deve ser usada para esse mesmo objectivo.”
Mal anoiteceu, cada um de nós foi inspeccionar a sua área. “

Não traduzo a parte em que ela conta como fixaram bem cada um dos locais onde queriam escrever, para serem capazes de fazer a pichagem mesmo em plena escuridão. A seguir recolheram-se à cave durante o alarme nocturno, de onde só saíram às três da manhã.

“Berlim, quarta-feira, 18 de Abril de 1945
Estamos de novo um metro debaixo da terra, pensativos e a passar em revista pela milésima vez a acção da noite. O último avião inglês retirou-se às duas da manhã. Os outros moradores arrastam as suas malas pelas escadas. As portas vão-se fechando uma a uma. Se ao menos já estivessem na cama! Têm uma tendência fatal para registar os ruídos no andar de cima. Por fim, deixamos de ouvir barulho nos outros apartamentos.
(...) A lua já baixou. As ruas estendem-se à nossa frente como tubos escuros. O último ocupante dos abrigos aéreos já regressou a casa. Tudo está tão silencioso que o barulho dos pneus da bicicleta no asfalto nos parece insuportável. Cinquenta metros antes da primeira casa da nossa “rota”, escondemos as bicicletas atrás de um monte de entulho. “Se alguém reparar em nós, paramos e beijamo-nos”, diz-me Frank. “Namorados parecem sempre inofensivos.” (...) Hesitante, dou alguns passos para a direita. Os meus dedos batem no canto de um marco de correio. De dentes cerrados, escrevo precipitadamente N-Ã-O na pala que cobre a abertura. O giz chia. Deve ser assim que os cegos se sentem quando estão a escrever. Viro-me. Quero sussurrar “Olha, funciona!”, mas Frank já não está ali. (...) Os nossos olhos começam a habituar-se à escuridão. As manchas das paredes e das montras vêem-se cada vez mais facilmente. Não – Não – Não. Ou tudo, ou nada. Pintamos e escrevemos com toda a energia. Nas bermas do passeio e nos postes, em portões de jardim e colunas de publicidade. Onde quer que o olhar se demore, inscrevemos “não” como um selo colorido.
Vamos silenciosamente de casa em casa. “Pst – pouco barulho! Polícia!” Estamos imóveis como colunas de pedra. A patrulha nocturna passa por nós em passos regulares. “Encosta-te à parede”, sinaliza Frank. Aperto-me contra as pedras como se quisesse penetrar nelas. Cheira a pó e madeira queimada. Que não nos vejam! As solas dos soldados batem pesadamente nas pedras da calçada. A ponta de um sobretudo toca-me o joelho. Retenho a respiração. Graças a Deus, não nos viram! Os seus olhos vazios olham em frente, como se fossem sonâmbulos. (...) A leste, o céu começa a ganhar cor. Temos de nos apressar se quisermos terminar antes do amanhecer. Na praça da Câmara, a coluna de publicidade do partido está em cima de um alto pedestal. Grita em parangonas ao mundo que “os judeus são a nossa perdição”. Quatro degraus. Entreolhamo-nos com precaução. Não será já demasiado claro? “Não me interessa, vou arriscar!”, diz Frank. Salta para os degraus. Como um cão assustadiço, fico à espreita. Cinco ruas desembocam na praça. Cinco fontes de perigo. Ao longe, aproxima-se o primeiro S-Bahn. Que não apareça ninguém! Que não apareça ninguém! A minha testa está coberta de suor. Frank trabalha como um profissional. Com demasiada lentidão para a minha paciência, mergulha o pincel na lata de tinta. Olho para aquele cartaz horrível. “Os judeus são a nossa perdição!” Frank começa a usar o pincel. Um pedaço de tinta vermelha cai – “como se fosse sangue”, é o que me ocorre. “Os judeus são a nossa perdição!” N-Ã-O! O protesto de Frank ,em traços largos como uma mão, ilumina o cartaz. Aprecia o seu trabalho como se fosse um artista. “Anda!”, insisto eu, “anda!”
Já amanhece. O casaco do Frank está em tal estado que parece que acabou de esfaquear um porco. O balde de tinta está vazio, os últimos bocadinhos de giz mal chegam para escrever mais alguns “não” magrinhos.”

Mais um pequeno salto na tradução. Vão para casa, pelo caminho vêem que os outros também trabalharam muito bem. Ao pegar nas bicicletas aparecem duas ratazanas, e ela dá um salto, enojada. O Frank ri-se dela. “As mulheres são assim. Arriscas a tua vida contra os nazis. Mas sobes a uma mesa quando vês um ratinho.” Passam pelas primeiras pessoas a caminho do trabalho. Em casa, encontram Leo Borchard, que está muito satisfeito. Conseguiu gastar toda a tinta que tinha, e estava capaz de pintar mais cinquenta ruas. Não foi apanhado a pintar, mas se tivesse sido, estava prevenido: levava no bolso um documento forjado por ele onde se lia que estava a realizar uma acção de propaganda ao serviço da organização de estrangeiros do NSDAP, e exigindo que o ajudem a desempenhar essa tarefa. No dia seguinte saem à rua para ver o resultado da acção. Por todos os lados há gente a esfregar, a lavar, a limpar. Os donos das lojas bem se esforçam para limpar as montras, mas a tinta a óleo não sai. Nas montras onde há uma folha a informar que a loja está temporariamente fechada devido a alistamento no exército, os “não” brilham com ainda mais intensidade. Frank descobre um rapaz que está a escrever algo antes do “não”: “Capitulação? Não! Rendição? Não!” A irritação dos dois só desaparece quando se dão conta de que mais ninguém lhes deturpou a intenção. Pedalam pela cidade, cada vez mais contentes. O Ku’damm, esse, está uma obra-prima. Não houve uma única montra que escapasse. Para onde quer que olhem, vêem o protesto escrito num branco luminoso. Na casa aonde vão buscar os folhetos que distribuirão nessa noite há um vaivém de pessoas com ar feliz. Os folhetos dizem:

“Berlinenses! Soldados, homens e mulheres! Conheceis a ordem do tresloucado Hitler e do seu cão de fila Himmler, para que defendamos as cidades até ao fim. Quem ainda obedece às ordens dos nazis é um idiota ou mau-carácter. Berlinenses! Segui o exemplo dos vienenses! Os trabalhadores e soldados vienenses conseguiram evitar um banho de sangue na sua cidade escondendo-se ou resistindo abertamente. Deve Berlim sofrer como Aachen, Colónia e Königsberg?
NEIN!
Escrevei o vosso „não!“ por todo o lado. Criai células de resistência nas casernas, nas fábricas, nos bunkers de protecção aérea! Atirai para as ruas os retratos de Hitler e dos seus cúmplices! Organizai a resistência armada!”

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Já traduzi para este blogue outros excertos do Diário de Ruth Andreas-Friedrich.
Podem ler aqui:
http://conversa2.blogspot.de/2011/09/partir-de-hoje-vamos-retaliar.html

http://conversa2.blogspot.de/2007/12/para-o-tempo-de-natal-1.html
http://conversa2.blogspot.de/2010/05/em-berlim-ha-65-anos.html
http://conversa2.blogspot.de/2007/11/fui-apanhada.html


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