13 novembro 2017

unicórnios na prisão da Stasi

No sábado passado voltei à prisão da Stasi em Hohenschönhausen, aqui em Berlim. Desta vez a visita foi conduzida por Karl-Heinz-Richter, também antigo prisioneiro político. Ao contrário da primeira que lá fiz, na qual o antigo prisioneiro nos falava sobretudo da história daquele centro prisional, da organização e dos métodos da Stasi, o nosso guia desta vez usou o cenário da prisão para nos contar a sua história. E que história!

Cito, na primeira pessoa, de memória:

Fui preso quando tinha 17 anos. O regime tinha a possibilidade de declarar que um menor em circunstâncias determinadas podia ser equiparado a um adulto, e deram-me tratamento prisional de adulto. Pior ainda: o Mielke gostava muito de mim, e eu tive azar - como quase sempre quando o amor não é retribuído.

Tinha um grupo de amigos que queria era fazer música com instrumentos de sopro, nada de cançõezinhas da Juventude Socialista. Sempre que nos vinham chatear para nos registarmos nas organizações da juventude, nós dizíamos que éramos cristãos. A vida ia correndo bem, mas às tantas eles começaram mesmo a apertar connosco. Alguns dos meus melhores amigos tentaram fugir para a Alemanha ocidental, e foram mortos. Enchi-me de raiva, e prometi aos outros: vou levar-vos todos para o outro lado. Descobri um sítio onde nos podíamos esconder na ponte da estação da Friedrichstrasse, para saltar para o comboio entre Moscovo e Paris. Todas as noites fugiam dois. Até ao dia em que tentei fugir eu próprio e as coisas correram mal. Tive de escolher entre arriscar-me a ser morto pela Stasi, ou saltar de uma altura de 7 metros para betão. Saltei. Parti as duas pernas e um braço, mas ainda consegui chegar a casa, a 3 km dali. A Stasi foi-me lá buscar uma semana depois - alguém me tinha denunciado. Levaram-me partido como estava para a prisão. O Mielke disse que eu era prisioneiro pessoal dele, e deu ordens para que não tivesse tratamento médico. Enfiaram-me numa solitária minúscula, sem luz do dia, sem água para me lavar, apenas com um balde a servir de sanita. Sabem o que acontece a quem não se lava? Fica cheio de comichão, começa a coçar, e acaba com a pele em carne viva. Tudo infectado. Um guarda disse-me para tratar as feridas com urina, e era o que eu fazia. Mijava para a mão, esfregava na ferida. Imaginam o cheiro que eu largava?
E depois, a comida. Pão húmido, e papas de cevada. Ainda agora fujo como tresloucado de sítios onde houver cheiro de papas de cevada. Na cave onde estava havia 300 presos a comer o mesmo. E os peidos que aquilo provocava? Vivíamos rodeados de um fedor imundo.
E ali estava eu, cheio de dores. Pedi analgésicos, uma vez, duas vezes, três vezes. Não me deram. Não voltei a pedir. Aprendi a meditar para tentar abstrair da dor. Quando me deixaram sair, para ser tratado, estive 18 meses num hospital. Como tinha os ossos todos tortos, tiveram de me operar 15 vezes para os partir e voltar a soldar na posição correcta.

Dizem que 90% das pessoas que passaram por esta prisão eram inocentes. Mas foram de tal modo torturadas, que 95% delas assinaram as confissões que lhes exigiam. Eu não assinei. Não é por ser herói - não há heróis nas câmaras de tortura. Simplesmente, quando lá entrei disseram-me que me iam matar. E eu pensei que enquanto não assinasse, eles não me matavam. Repetiam muitas vezes que me iam matar, e uma vez chateei-me e respondi-lhes: "então matem! Só me podem matar uma vez. Depois disso, só vos resta fazer violação de um morto". Ui, foram aos arames!

Eu tinha um problema: era berlinense, e a maior parte dos agentes era da Saxónia. Saxões! Onde é que já se viu um rapaz berlinense gostar dos saxões? Eles davam-me ordens no seu dialecto, e eu não obedecia. "És surdo, ou quê?", berravam eles. E eu: "não vos entendo. Vejam lá se conseguem falar Hochdeutsch." [E ria-se. Ele, que falava em dialecto cerrado de Berlim, a mandar os soldados falar a norma culta...]

[Entretanto tínhamos chegado à garagem onde entrava a carrinha com cinco compartimentos minúsculos para prisioneiros e lugar para um guarda. Ele pôs-se em frente à porta que dava para o corredor do edifício, e continuou: ]

Passaram por aqui milhares de prisioneiros. Imaginem o medo de cada um dos que passava por esta porta! As mulheres, estranhamente, eram mais aguerridas. Mais corajosas. O que elas arriscavam! Ao fim de algum tempo correu a notícia de que havia um rapaz de 17 anos com os ossos todos partidos e sem medicamentos numa cela. Algumas, que trabalhavam na cozinha, passavam-me por baixo da porta folhas de papel dobradas com um bocadinho de sal e de pimenta dentro, para melhorar o sabor das minhas papas de cevada. Quando me levavam para o interrogatório eu tinha de levar o papel comigo, porque na minha ausência a cela era revistada e se apanhassem aquilo as mulheres iam pagar bem caro.

O primeiro interrogatório demorou 25 horas. Eles queriam a todo o custo saber por onde é que os meus amigos fugiam. Eu não podia dizer, porque ainda havia dois que queriam fugir. Tinha de ganhar tempo.

[Continuámos a andar. Mostrou-nos o duche, numa parte da prisão construída na época em que a RDA tentou ser reconhecida internacionalmente, e para isso melhorou as condições dos prisioneiros.]

Uma vez por semana podíamos tomar um duche, mas era de água fria. No inverno era terrível. E ali estava eu, com a mão partida a tentar agarrar o sabonete, e o sabonete a escorregar. Do lado de lá das grades, os guardas assistiam aos meus esforços e riam-se. Enchi-me de fúria, agarrei no sabonete com a mão que estava boa e atirei-o com toda a força na direcção dos homens. Acertou em cheio na testa de um deles, num instante transformou-se num unicórnio. Hehehe. Queriam vir-me dar uma tareia, e eu ali nu a desafiá-los: venham, venham!
O meu pai era bóxer, e eu também me sabia defender. Não vieram.

O meu processo tinha 3500 páginas. Pedi para fotocopiarem tudo, levei para casa. Ao ler o que lá escreveram - e escreveram tudo - fiquei pasmado com a minha inconsciência. Como era possível provocá-los daquela maneira? Mas era a única maneira de não me ir abaixo. Isso, e inventar histórias no silêncio da cela.

Às vezes conversávamos com os outros prisioneiros. Batíamos na parede, 1 toque para A, 2 para B, etc. Demorava muito tempo - mas nós tínhamos todo o tempo do mundo.
Durante muito tempo conversei com a prisioneira do lado. Monika. Só muito depois descobri que a Monika era um homem, um agente da Stasi. Passei semanas da minha vida a contar fantasias sexuais a um agente da Stasi!

A Stasi tinha uma rede enorme de agentes: 91.000 para a população da RDA. Compare-se com a Gestapo, que só tinha 7.000 para todo o Deutsches Reich.

[Fui verificar: perto do final da guerra, a Gestapo tinha 31.000 homens. A Stasi tinha uma dimensão inacreditável: 1 agente para 180 cidadãos. A KGB era 1 para 595.]

Acabei por sair da prisão, casei, tive uma filha. Quando tudo se tornou ainda mais insuportável, fiz o pedido para poder abandonar o país. Foi concedido, mas antes o Mielke ainda me deu um presente: meteu a minha mulher na cadeia, e levou a minha filha de cinco anos para ser adoptada por um casal comunista. Nunca mais a vi. A minha mulher não sabia de nada. Eu ia visitá-la, e não lhe dizia nada. Quando a libertaram, e nos concederam licença para irmos morar no Ocidente, ela perguntou pela menina. Disse-lhe a verdade, e ela foi-se abaixo. Contou-me então que tinha sido violada na prisão. Desde então, está a ser acompanhada por psiquiatras. Nunca mais recuperou.

Fomos para Berlim Ocidental. Arranjei um passaporte falso, e ainda fui à RDA buscar mais vinte pessoas. Intelectuais. Queria vingar-me do regime comunista, fiz o que pude para lhes roubar a elite.

Mas um dia vieram atrás de mim. Queriam raptar-me, e levar-me de novo para a RDA. Soube defender-me (andava sempre armado). Mas a polícia ocidental disse-me que não estava em condições de me proteger, caso a Stasi tivesse mesmo decidido raptar-me. Sugeriram-me ir para países distantes. Fui para a Nigéria, na altura da guerra, e andei a fazer o que sei fazer melhor: levar pessoas para fora do país, para os Camarões. Só eu me arriscava a atravessar aqueles territórios ocupados por bandos inimigos.

Depois fui para a Arábia Sáudita e o Iémen. A Stasi não tinha filiais naqueles países.

Quando o muro caiu, a minha mulher disse que estava com saudades da Alemanha. Decidimos voltar. Em 1990. Um dia, entrei num supermercado, e senti um cheiro conhecido. Estava ali um homem que eu conhecia da prisão. Perguntei-lhe se tinha sido agente da Stasi. Olhem, para resumir, só vos digo que aquele encontro me custou 6.500 marcos.

(...)

Os comunistas não sabem fazer contas. Se lhes dessem uma porção de deserto para gerir, haviam de conseguir chegar a uma situação de escassez de areia. O Karl Marx era um garanhão bêbedo. Li o Capital, não percebi nada. Deve tê-lo escrito quando estava bêbedo.

[A visita terminou. Fomos à loja, e comprámos um livro dele. Comecei a folheá-lo, e descobri que a filha não tinha sido levada para adopção forçada. Foi com os pais para Berlim Ocidental. Comecei a perguntar-me quanto do que ele contou seria verdade, quanto seria resultado de uma mistura entre a sua própria história e a de outros, quanto seria pura e simplesmente delírio.

Tenho vontade de ir mais vezes àquela prisão, e falar com muitos dos ex-prisioneiros. Mas talvez seja melhor ler também livros dos historiadores, para não me deixar ir em histórias de agentes da Stasi repentinamente transformados em unicórnios.]


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