20 outubro 2017

"que farei quando tudo arde?" (sim, também eu je suis Sá de Miranda)

O meu sogro contou-me que em criança, quando havia alerta de ataque aéreo e todos os vizinhos se apinhavam às escuras na cave fria, quando morria de medo ao ouvir os aviões e as bombas a rebentar nas redondezas, a mãe dele dizia no seu famoso tom peremptório "a nós não vai acontecer nada!" - e ele acreditava. Sessenta anos depois lembrava, com um sorriso, que naqueles momentos tinha a certeza absoluta que ao lado dela estava seguro, que o prédio deles não seria apanhado por uma bomba, nem seria consumido pelas chamas dos outros, nem nada.

Olho para os tempos que correm, e tenho a sensação que as nossas sociedades parecem crianças de cinco anos a acreditar, contra todas as evidências, que "a nós não acontece nada".

Provavelmente devido ao progresso técnico que nos afasta da lógica e da força bruta da natureza, devido à intervenção cada vez maior dos Estados para melhorar as condições de segurança e também, de um modo mais lato, às políticas de convergência europeia que têm evitado guerras e conflitos graves entre os países desta parte do mundo, o nosso instinto de sobrevivência está a ficar embotado, temos dificuldade em reconhecer os perigos que nos rodeiam, delegamos no Estado cada vez mais a responsabilidade de cuidar de nós e resolver os nossos problemas, e odiamos o governo quando as coisas não correm como achamos que deviam.

Todos conhecemos bons exemplos disso: pessoas que andam na rua quando um temporal está a passar com toda a violência; condutores que vão demasiado depressa para o permitido pelas condições climatéricas ou pelo tipo de estrada, e temem mais a multa que o acidente; agricultores que fazem queimadas pensando mais no risco de haver um GNR por perto que no de deitarem fogo à aldeia toda; veraneantes que se estendem junto às arribas das praias apesar de todas as placas a informar que ali correm risco de vida, e que culpam o governo por não ter betonado as arribas de modo a evitar mortes. A um outro nível, eleitores que usam referendos para votos de protesto achando que não haverá consequências negativas para eles, cidadãos que embarcam em discursos de profundo egoísmo nacionalista sem pensarem no que lhes pode acontecer se os outros países também desistirem da cooperação e do entendimento.

O mundo está perigoso e complexo, mas nós olhamos para o Estado com a atitude pueril de uma criança de cinco anos que confia nos superpoderes da sua mãe. E se este falha às nossas expectativas, pior ainda: olhamo-lo com a exigência e o repúdio de um adolescente em relação aos adultos.  


Vem isto a propósito dos incêndios em Portugal, essa autêntica crónica de uma morte anunciada. Ao longo de muitas décadas a sociedade abandonou o interior, o delicado equilíbrio entre as pessoas e a natureza foi quebrado pelo fim das actividades humanas que reduziam o risco de incêndio (baldios para pastorícia, recolha de matos e outros materiais combustíveis para a lareira e a corte do gado, por exemplo) e pela submissão aos interesses da indústria da pasta do papel. Os poucos que ficaram no interior deram consigo a viver no meio de cada vez mais matéria altamente inflamável, e todos os anos se repetem os incêndios e as imagens de populações sobressaltadas, bombeiros exaustos, chamas incontroláveis.
Sabemos isto, mas continuamos a fazer as nossas casinhas de férias no meio dos pinhais, a desprezar medidas básicas de segurança, a respeitar muito a actividade empresarial de uns e a defender a propriedade privada de outros, mesmo quando os donos nem sequer sabem o que têm e onde. A nossa relação com a natureza e os seus riscos mudou drasticamente, mas continuamos a fazer a vidinha de sempre, com a confiança pueril de que "o Estado resolve" e "a nós não vai acontecer nada".

Mas acontece, acontece todos os anos, e muitas vezes com vítimas mortais: 25 em Sintra em 1966, 14 em Armamar em 1985, 16 em Águeda em 1986, 4 em 2002, 20 em 2003, 2 em 2004, 5 em 2006, 6 em 2012, 9 em 2013, 3 em 2016. E agora, o ano negro de 2017.

Amanhã vai haver em Lisboa uma manifestação para protestar contra o governo, os incêndios, as mortes. Neste ano que tão dolorosamente nos mostrou que muito tem de mudar, seria muito positivo que essa manifestação servisse também para as pessoas anunciarem o seu apoio às medidas necessárias para mudar tudo. Os manifestantes apoiam uma lei de expropriação de  todos os terrenos que não são cuidados pelos seus proprietários? Estariam dispostos a pagar um imposto suplementar para o esforço estatal de reflorestação nacional, de limpeza das matas e de protecção das populações em aldeias isoladas? Ou preferem que se esvaziem todas as aldeias às quais os bombeiros não conseguem chegar fácil e rapidamente? Apoiam que se derrubem todas as casas isoladas que estão demasiado perto da floresta, ou, alternativamente, que se arranquem todas as árvores à volta? E, para usar uma das propostas mais populares por estes dias: qual dos manifestantes se oferece como voluntário para prender a uma árvore um desses velhos agricultores que fez uma queimada, ou um condutor que atirou a beata pela janela, e deitar-lhe fogo?

Se a manifestação for só para dizer que estão descontentes, e que o Estado tem de lhes resolver o problema, e que querem voltar a sentir-se seguros, pois então, parafraseando a revista Sábado: "boas férias". Que lhes saiba bem desistir do trabalho de ser adulto, e saborear o papel de um menino de cinco anos que quer acreditar que a sua mãe tem superpoderes. Ou voltar à pele de um adolescente frustrado por os pais não lhe conseguirem dar tudo aquilo que quer. 

Voltando à história do meu sogro: quando os bombardeamentos aumentaram de intensidade, os pais mandaram-no com os irmãos para a casa dos primos, na aldeia. Passado algum tempo, o rapazinho telefonou à mãe a chorar, cheio de saudades, pedindo para o deixar voltar para casa, e a mãe respondeu-lhe que se ele voltasse a fazer uma cena dessas ela se metia no comboio para lhe ir encher o rabo de sapatadas. A casa foi bombardeada e destruída. O pai, que tinha uma firma de instalações sanitárias, trabalhou dia e noite para a reconstruir. Os filhos voltaram para casa e passaram fome porque parte do apoio especial que o Estado dava no pós-guerra para o sustento das crianças era desviado para ajudar a pagar o salário dos empregados da empresa. Tanta terá sido a fome que, aos setenta anos, o meu sogro ainda era incapaz de deitar um bocado de pão seco ao lixo. 
 
Aquele miúdo percebeu que a mãe não tinha poderes mágicos, e que ele próprio tinha de pagar um alto preço para assegurar a sua sobrevivência, e contribuir para melhorar a situação de todos. 
Tinha dez anos quando a guerra terminou. 
Nós, muito mais velhos que ele, também seremos capazes de perceber o que se espera de nós quando tudo arde. 


2 comentários:

Manuel Rocha disse...

Muito bem !

E no meio deste cenário o que fazem os média ? Alimentam o medo e a alienação que refere. De contributos consequentes, zero. Nem sequer são capazes de ter a iniciativa de fazer campanha para esclarecer as pessoas do básico que não podem fazer numa situação de fogo. Exemplo: ir combate-lo de calções de praia e havaianas.

jj.amarante disse...

Este post e o anterior sairam-lhe muito bem!