20 outubro 2017

perder a razão


Mais de cem mortos devido aos incêndios deste verão é muito mais do que um país consegue aguentar sem perder a razão.

De modo que, nestes dias que se seguem à tragédia e ao choque, damos com muitos portugueses de cabeça perdida a largar imprecações contra o governo, a apelar à justiça popular, à lei de Talião e à vingança, a capitalizar a comoção geral para as jogadas políticas, a criticar tudo e todos, a fazer exigências impossíveis.

Questionar e criticar o mau funcionamento dos serviços estatais de protecção civil, a incompetência e as decisões erradas e fatais e a falta de resposta adequada por parte dos governantes é legítimo e perfeitamente compreensível. O que não é legítimo nem aceitável é que alguns abusem da tragédia destas mortes para criar um clima de agitação social que derrube o governo, chegando para isso a esquecer deliberadamente condicionantes várias e a deturpar frases dos políticos.

Temos, por exemplo, a reacção ao ponto da situação que o secretário de Estado da Administração Interna, Jorge Gomes, fez a partir de Arouca. Em plena crise (mais de 500 incêndios em simultâneo), ele informa que no princípio da semana, por terem previsto que seriam uns dias difíceis, reforçaram as forças de combate aos incêndios com mais 1000 operacionais. Mas mesmo que tivessem cinquenta mil bombeiros, numa crise com estas dimensões continuaria a haver localidades onde não se podia chegar. Explicou que tinham meios aéreos que não puderam usar porque as colunas de fumo não o permitiam. E que, em casos destes, têm de ser as próprias comunidades a ser pró-activas, e não devem ficar à espera do auxílio dos bombeiros e dos meios aéreos.

Como é possível que algo tão óbvio tenha sido entendido como uma recusa de o Estado prestar auxílio? Como é possível que essas frases tenham dado origem a tantas imprecações e a tantas críticas contra o governo? Será que as pessoas pensam mesmo que é possível ter uma equipa de bombeiros durante todo o verão junto a cada casa no meio do monte e um agente da GNR dia e noite em cada campo, a controlar para que ninguém faça queimadas, ou em cada pinhal para impedir os pirómanos de fazer estragos?

A propósito dessa frase do secretário de Estado, uma amiga minha falava de aldeias que conhece em Trás-os-Montes, de população envelhecida e praticamente sem acessos, e perguntava se são essas aldeias e essas populações que se querem pró-activas ou ainda mais resilientes, acusando o governo - todos os governos - de desconhecerem a realidade do interior do país, que continua invisível para Lisboa. É um desabafo pertinente. Mas a sua descrição dessas aldeias semi-abandonadas, isoladas e com acessos difíceis lembrou-me imediatamente um momento negro da intervenção da troika na Grécia, quando foi proposto despovoar inteiramente as ilhas com poucos habitantes, para poupar dinheiro ao Estado. Não podemos ignorar que o governo português tem de responder não apenas perante o seu povo, mas também - infelizmente - perante os seus credores (isto admitindo que a saída da zona Euro e a impressão de notas de moeda nacional para pagar as despesas do Estado não é uma hipótese). Credores esses que não vão, obviamente, perdoar a um governo de esquerda que queira endividar-se ainda mais para fazer política social. Ou sou só eu que, ao ouvir a exigência de melhorar as acessibilidades para todas essas aldeias em extinção, vejo imediatamente a carranca do Schäuble a dizer "têm de poupar! têm de poupar!"?



Em suma: para desgraça, já basta o que basta.
Apesar da dor e do choque, temos de ser capazes de recuperar a razão.

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