Copio para este blogue um texto excelente do Frederico Lourenço (desculpem o pleonasmo), publicado no facebook.
Só queria
acrescentar uma ideia para os cristãos: deixemos entrar a luz de Cristo.
Não é a Igreja, não é a terrível História da Igreja, não é a tralha
acumulada em 2000 anos de Igreja. É a essência da mensagem de Jesus
Cristo.
(Escrevo isto, e fico a pensar num comunista que ouvi há
dias, a dizer que a ideia de comunismo é boa, as pessoas é que não a
souberam aplicar, e que devíamos tentar outra vez porque da próxima vez é
que vai correr bem...)
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Frederico LourençoSão Paulo, Rembrandt e a «cura gay»
Se tivessem dito ao fervoroso adolescente católico que eu era nos
anos 70, eu não teria acreditado. Se, nos anos 80, durante tantas
conversas com amigos padres, nos tivessem dito - também não teríamos
acreditado.
O que se passa com este século XXI, que
antecipávamos esperançosamente como o triunfo do Iluminismo, como o
século das Núpcias da Fé e da Razão? Porque voltámos de repente à Idade
Média, neste ano em que celebramos os 500 anos da Reforma protestante, o
evento que deu início à Idade Moderna?
No país da Ciência que
levou o ser humano à Lua, senta-se hoje na Casa Branca um presidente
apoiado por baptistas e pentecostais, eleito por 80% dos evangélicos
americanos. Esta administração americana dá cobertura e apoio às versões
mais retrógradas e obscurantistas do cristianismo: ao cristianismo dos
bilionários (como Betsy de Vos), dos supremacistas brancos do Southern
Baptist Convention. Já foi divulgado que, uma vez por semana, há uma
aula de estudos bíblicos na Casa Branca, onde um pastor milionário
ensina aos bilionários da administração Trump a ler a Bíblia sob o
prisma da teologia da prosperidade, do criacionismo, da negação completa
da Razão.
Ganha força, no século XXI, a superstição que o século
XVIII (e ainda mais o século XIX) veio refutar: a de que a Bíblia nos
dá a ler, sem erro, a palavra «inerrante» de Deus. Cada vez mais se
produzem e distribuem Bíblias pelo mundo inteiro em que todos os avanços
do estudo crítico-histórico da Bíblia são postos de lado. Voltamos,
nalgumas Bíblias do século XXI (inclusive em português), a ler uma
absurdeza já refutada em 1672 por John Marsham, de que o livro de Daniel
foi escrito no século VI a.C. (e não, como concordam os estudiosos
sérios, no século II).
Temos produzidas e distribuídas em massa
edições da Bíblia que nunca dão a entender aos leitores que é impossível
que São Paulo tenha escrito as 13 cartas que lhe são atribuídas no Novo
Testamento: na melhor das hipóteses, terá escrito 7. E quantos
católicos e protestantes sabem que é possível argumentar, como fez Bruno
Bauer em 1852, que todas as cartas atribuídas a Paulo no Novo
Testamento são falsificações escritas em nome de Paulo no século II,
posição crítica retomada em 1995 por Hermann Detering e em 2012 por
Robert Price (remeto para a Bibliografia do 2º volume da minha tradução
do Novo Testamento)?
O estudo sério sobre a Bíblia que se faz nas
universidades não-católicas e não-evangélicas está cada vez mais a ser
apagado e afastado da consciência dos cristãos, substituído por um
discurso de aterradora ignorância e de imposição de uma agenda política
colada ao catolicismo na Polónia, colada ao protestantismo baptista nos
EUA e colada ao protestantismo evangélico no Brasil.
A Bíblia
prestou-se desde sempre a ser instrumento daquilo que o poder político e
religioso lá quis projectar. A distopia teocrática por que alguns
pugnam na Polónia, no Brasil e nos EUA é algo que temos de combater com
os instrumentos da Razão, com o estudo da História, com o pensamento
crítico. E temos de combater essa realidade distópica com o próprio
estudo crítico-histórico da Bíblia. Informarmo-nos, hoje, sobre a Bíblia
é verdadeiramente urgente.
Pois do mesmo modo como olhamos
criticamente para o retrato fantasista de São Paulo pelo pintor
seiscentista Jan Lievens (que pôs Paulo anacronicamente a escrever num
livro cosido e encadernado, objecto que não existia em vida de Paulo),
temos de olhar criticamente para o retrato fantasista que os movimentos
políticos distópico-teocráticos nos querem impor dos textos que servem
de base ao cristianismo.
Que sustentação bíblica pode haver para a
«cura gay», se nós não sabemos quem escreveu, nem em que
circunstâncias, nem com que intenção, os poucos versículos do Antigo
Testamento (equivalentes a pouco mais de 30 palavras num universo de
600,000) que condenam a homossexualidade? Nem sabemos como foram colados
os conjuntos de frases desgarradas que são tantas vezes as cartas
atribuídas a Paulo?
Há um debate aceso nas grandes universidades
do mundo (Harvard, Yale, etc.) sobre se as frases de Paulo podem ser
interpretadas como conveio durante séculos que fossem explicadas. E
continua o debate - o livro de Price de 2012 é prova disso - sobre quem
escreveu as cartas atribuídas ao apóstolo.
Sabemos que o pintor
neerlandês Jan Lievens fez tudo o que pôde para pintar no estilo de
Rembrandt - e pode ter convencido, em tempos, algumas pessoas. Mas a
História da Arte tem hoje métodos científicos que permitem distinguir
Rembrandt dos falsários que pintaram de modo a se fazerem passar por
ele.
Da mesma maneira, temos de dar ouvidos aos grandes estudos
críticos sobre a Bíblia, à grande bibliografia produzida desde o século
XIX, que nos distingue as autorias reais e imaginárias dos livros da
Bíblia.
Não nos deixemos levar por esta onda neo-medieval. Não
baseemos decisões sobre a vida de pessoas que vivem no século XXI, em
democracias laicas cuja implantação foi um dos maiores triunfos da
história da humanidade, num Livro sobre cujas autorias, cronologia e
coerência interna não temos a mínima certeza.
Demos a Rembrandt o
que é de Rembrandt - e a Paulo o que é de Paulo. Não voltemos, em 2017,
à leitura obscurantista da Bíblia que se fazia até ao século XVII.
Abramos a janela da Razão e deixemos entrar a luz.
imagem: São Paulo por Jan Lievens (século XVII)
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