02 janeiro 2017

a queda dos machos

Parece que o shit storm do dia calhou ao psiquiatra José Luís Pio Abreu, devido a uma entrevista à Sábado, a propósito do livro A Queda dos Machos, agora publicado.

A entrevista está tão cheia de banalidades, superficialidades e exemplos enviesados que uma pessoa até desconfia. Normalmente eu desconfio da tradução, mas neste caso pergunto-me se a Sónia Bento, que o entrevistou, terá feito alguns erros de corte e encadeamento de frases, transformando um pensamento articulado numa catástrofe. E essa é mesmo a minha primeira questão sobre esta entrevista: quanto do que está ali corresponde realmente ao pensamento do psiquiatra, quanto é resultado do trabalho do entrevistador? Caso queira perguntar "como disse?", a quem me devo dirigir?




Alguns (poucos, que o espírito do Natal ainda paira por aqui) apontamentos sobre as ideias publicadas na Sábado:

1. De quem é que José Luís Pio Abreu está a falar? Diz "os homens", "as mulheres", mas depois foca-se muito nas pessoas do ensino universitário, que é frequentado por apenas 25% da população portuguesa. Será que o livro se devia chamar "A Queda dos Machos na Academia"? Ou talvez até "A Queda dos Machos no Penoso Caminho para a Academia"? Ou ainda, e já verão porquê (no ponto 3), "A Queda dos Machos no Penoso Caminho para a Cama das Mulheres da Academia"?


2.
"O que é que as mulheres têm dificuldade em digerir, como diz?
O facto de os homens às vezes olharem para outras mulheres ou até se envolverem. As mais inteligentes percebem que eles precisam disso. Todos os dias vemos dramas de homens que matam mulheres, mas não se sabe o que é que aconteceu antes disso. Normalmente, o homem está controlado, depois bebe e explode porque não aguenta mais. É extremamente difícil para eles quando elas os mandam embora e lhes ficam com os filhos. Isso é trágico."


Isto não faz sentido nenhum, pelo que suspeito que tenham sido cortadas frases importantes para o encadeamento do raciocínio. E gostava muito de saber que frases precederam o segmento "Todos os dias vemos dramas etc.", porque é inconcebível que um psiquiatra, para mais um psiquiatra com responsabilidades em processos da Justiça, fale com esta leveza do crime de homicídio.
Também devo ter entendido mal aquela constelação sofrimento/álcool/violência/filhos/sofrimento. Se um tipo é capaz de matar quando "bebe e explode", a prioridade é proteger os filhos dessa pessoa. O esforço de explicar o seu comportamento pondo a tónica no que lhe fazem e não na sua própria propensão para a violência confunde causa e consequência. Mas, como disse, suspeito que faltem aqui frases ditas durante a entrevista. Tanto mais que nesta explicação se dá uma imagem lamentável do masculino: pessoas imaturas, incapazes de agir de forma racional, ética e responsável, apenas capazes de reagir ao meio. O que, pensando bem, explicaria o título do livro: A Queda dos Machos. Se são assim, pois que caiam, que machos destes não fazem cá falta nenhuma. 

3.
"Se falarmos em termos de desejo sexual, antes as mulheres eram muito inibidas, mas actualmente também não estão satisfeitas nessa matéria, na maior parte dos casos. Acho até que existe pouco desejo sexual.
Porquê?
Porque as mulheres são todas notáveis, inteligentes, têm cursos superiores e não encontram homens à altura, capazes de lhes despertarem a líbido. Podem até ter relações efémeras, que não passam disso. A não ser que eles comecem a acompanhá-las, estudando." 


Mais uma vez o universo de análise afunila para a população académica, e para uma academia curiosa, porque frequentada apenas por mulheres. É certo que hoje em dia há mais mulheres que homens a frequentar o ensino universitário, mas, mesmo nos anos de maior desproporção, essa diferença andava pelos 10% da população estudantil.
No entanto, a ideia tem alguns aproveitamentos curiosos. Por exemplo, estou a rever todas as anedotas que conheço com variações do tema "hoje não, que tenho dores de cabeça", e a trocar essa frase por "Olha... estudasses!"

4.
Então considera que o regresso de uma pequena dose de machismo não seria mau?
Machismo? Essa é uma palavra proibida. Já viu que toda a gente pode falar em feminismo, mas em machismo, não? Há 50 anos, mesmo os homens mais progressistas não deixavam as mulheres estudar, metiam-nas em casa a aprender lavores, o máximo que elas podiam chegar era a assistentes sociais. Eles tinham medo delas e metiam-nas em casa, mas eles podiam andar com todas. Era uma sociedade extremamente machista, em que as esposas, puras, eram para ficar em casa a tratar dos filhos. Claro que hoje este machismo não está adequado. Mas o que eu acho é que vivemos uma fase de feminismo exacerbado, estas novas tendências de acabar com o género são absurdas. O individualismo não existe.


A minha primeira questão é: se o machismo de há 50 anos não está adequado, que espécie de machismo é esse que devia ter direito a ver a luz dos nossos dias? De que falamos quando dizemos "machismo"?
Outra questão é a da assimetria dos conceitos. Machismo e feminismo não são conceitos equidistantes de um ponto de equilíbrio. É mais como falar em esclavagista e antiesclavagista. Não faz sentido alguém vir queixar-se de não o deixarem defender o esclavagismo.
Podemos apontar e discutir exageros em algumas correntes feministas, mas isso não ilude o essencial: o feminismo corrige o erro do machismo. E enquanto forem as mulheres a imensa maioria das vítimas de violência doméstica, enquanto os cargos de chefia e de maior visibilidade pública forem na sua maior parte ocupados por homens (os tais que, curiosamente, segundo esta entrevista não estudam, não se aplicam, não são brilhantes como as mulheres), enquanto as mulheres ganharem menos que os homens, enquanto tiverem mais dificuldades que eles no mercado de trabalho por estarem em idade fértil, enquanto continuarem sobrecarregadas com os trabalhos domésticos e a educação dos filhos a par da vida profissional, enquanto tudo isto continuar a acontecer é um bocado precoce falar em reabilitação do machismo.
Gostava muito que já se pudesse falar dos direitos dos homens a partir do tal ponto de equilíbrio que é a igualdade de oportunidades e contextos. Mas, até lá, o mínimo que se pode dizer do José Luís Pio Abreu é que é um visionário. Muito, muito à frente do seu tempo.


1 comentário:

maria disse...

Olá, Helena

não li a entrevista e fico só nos apontamentos que aqui trazes (imagino que isto esteja a incendiar o facebook :p), eu aconselhava que se lesse o homem com prudência. As relações entre eles e elas são muito mais (complicadas) que machismos e feminismos.

Beijinho e continuação de FESTAS FELIZES.