Esta manhã o Fox fugiu para o memorial Gleis 17. Fui atrás dele, e encontrei um senhor a tirar fotografias. Falei-lhe da placa do dia 27.11.1941, e ele sabia. Tem amigos que eram de Riga, e viram assassinar um grupo de judeus a tiro, no pátio do prédio onde viviam. Essas pessoas viram-se depois obrigadas a fugir, e durante uns meses viveram, a contragosto, com polacos. "Quem não perdeu tudo, como eles, tem uma perspectiva muito limitada e simplista sobre o que é certo e errado." Pensei que estava a falar de judeus, mas não - falava dos alemães que foram expulsos da Europa oriental, ou fugiram precipitadamente dos soldados soviéticos. E continuou:
- Essas pessoas perderam tudo - as suas coisas, os lugares da sua história pessoal e o estatuto social - e recomeçaram a vida na Alemanha a partir do nível mais baixo, o de refugiado. Durante décadas não falaram do seu sofrimento, ou por ser muito doloroso ou por não cair bem queixar-se quando se é parte do povo que iniciou, praticou e provocou tantos actos de inacreditável horror. Mas o silêncio é terrível, porque os traumas estão a ser passados aos seus descendentes, que vivem com um sentimento surdo e inexplicável de que algo não está bem.
- Como as violações, disse eu. Durante décadas, as mulheres viram-se obrigadas a silenciar o crime de que foram vítimas.
- Sim, concordou. Uma tia minha foi violada pelos soldados russos, e teve um filho que morreu, infelizmente.
Fez uma pausa, e corrigiu:
- Infelizmente, ou talvez graças a Deus. Esses assuntos - tanto as violações como a criança - eram tabu na nossa família.
- Finalmente começa a falar-se do que aconteceu aos alemães. Desde há pouco mais de uma década comecei a ver artigos sobre esses temas.
- E até estão a fazer um museu sobre esses refugiados da II Guerra Mundial. Já não era sem tempo. Foi um período de muito sofrimento para todos. Mesmo esses que cometiam crimes horrorosos, mesmo esses têm uma história para contar. Leia o livro de Willy Peter Reese "Mir selber seltsam fremd" ("estranhamente estranho a mim"), um conjunto de apontamentos que se tornaram um diário da frente. Ele queria ser escritor, queria ser um Goethe, e foi mandado para a guerra, destruíram-lhe a alma. Morreu lá, aos 23 anos. As cartas que escrevia à mãe foram descobertas há tempos, e publicadas. Um livro impressionante. E depois, as pessoas que estavam do lado de lá, nesses sítios aonde ele levou a destruição. Conheci um deles. Aos 15 anos meteram-no descalço, e com a roupa que tinha no corpo, num comboio com destino aos trabalhos forçados em Berlim. Ao chegar aqui vestiram-no, calçaram-no, tiraram-lhe uma fotografia, e mandaram-no para o cemitério na Hermannstrasse, para um campo de trabalho que lá havia. Era um grupo de cem. Há alguns anos, na minha paróquia começou-se a falar disso, e fomos procurar as pessoas que ali tinham trabalhado. Fizemos anúncios na rádio e na televisão da Rússia e da Ucrânia. Um dia, um homem escreveu-nos a dizer que o pai dele sonhava em alemão. Foi assim que ele veio à Alemanha, ficou na minha casa, e na minha própria sala anunciou que se tinha fechado o ciclo, estava em paz com a sua história e já podia morrer. Depois começou a cantar „Heideröslein“ (uma canção muito popular na Alemanha, com música de Schubert para um poema de Goethe). Uma pessoa fica sem saber o que dizer. Morreu recentemente, tinha Parkinson. Fui visitá-lo quando a doença já ia adiantada, tinha um saco cheio de medicamentos e não sabia quais deles tomar. Uma catástrofe.
Voltei um pouco atrás na conversa, perguntei-lhe se esse prisioneiro dos alemães não tinha tido problemas ao regressar à terra dele, por ser considerado colaboracionista.
- Claro que teve! Quando o Exército Vermelho entrou em Berlim vestiram-lhe uma farda e puseram-no a trabalhar no transporte de prisioneiros de guerra. Mas, mal chegou a casa, foi julgado por colaboracionismo com o inimigo. Ele, que era esperto, dispôs-se logo voluntariamente a fazer os transportes de prisioneiros para a Sibéria. Passou dez anos a fazer isso, todos os dias carregava à pá 18 toneladas de carvão. Passou por muito na vida, esse homem.
Passar dez anos a levar prisioneiros para a Sibéria, para reduzir a crueldade de um castigo onde nem havia culpa...
Lembrei-me do outro, o maquinista de Auschwitz. O melhor amigo do filho dele era um rapazinho judeu que vivia com a mãe numa barraca, alegando que a casa deles tinha sido bombardeada e não tinham nem documentos nem alojamento. Ele levava judeus para Auschwitz, e fazia tantos transportes quantos a sua força permitia, para poupar aos colegas essa descida ao inferno. "Já me destruíram", dizia, "ao menos que não destruam também os outros". Quando a guerra acabou, os dois rapazes andavam a brincar com material militar perdido na floresta, e uma granada rebentou no bolso do filho do maquinista. O miúdo judeu levou-o ao ombro até casa. Como o filho morto no colo, o pai chorava, dizendo "este é o meu castigo, é a paga pelo que fiz."
1 comentário:
Sem palavras. Obrigado, Helena.
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