18 maio 2016

de mil faces transbordantes



No próximo domingo, o Daniil Trifonov vai tocar o concerto nº 2 para piano de Rachmaninov na Filarmonia de Berlim. Vi-o há meses, a tocar o nº 3. A sala inteira em apneia, até se esqueceram de tossir e tudo.

Os bilhetes para o próximo domingo são demasiado caros, pelo que estou a pensar um plano B, teimosamente fundado na convicção de que a esperança é a última a morrer: ir para a porta, ver se há alguém com um bilhete a mais, que o queira oferecer. Às vezes, há.

O problema é que no próximo domingo vou cantar a missa de Schubert. Estarei na Filarmonia das dez da manhã até às seis da tarde, completamente mergulhada em música e endorfina da melhor. Já basta para um dia, já deveria bastar - e bastaria até para um mês, ou seis meses, ou um ano, se a minha vida não fosse a tal de mil faces transbordantes.

Há tempos, uma das cantoras que participou na ópera do ano passado comentou que foi o melhor que lhe aconteceu nesse ano (ou terá dito "na vida inteira"?). Fiquei muito surpreendida, porque eu tinha conseguido encaixar a ópera entre uma viagem maravilhosa à Costa Rica e a festa que organizámos na nossa rua - para falar apenas do que aconteceu na mesma altura. Pergunto-me se dou o devido valor ao que me acontece, ou se na vertigem de tanto e tão bom acabo a deslizar pela vida sem lhe tocar a profundidade.

Estou a ouvir o Trifonov, e a pensar que gostaria imenso de o ver no próximo domingo, mas não sei se consigo estar realmente nesse concerto com ele logo depois de ter cantado a mil vozes uma missa de Schubert - essa missa que estou a fazer minha.

Não será uma overdose de sensações demasiado intensas?
Menos é mais?

Não me digam que ainda agora completei cinquenta anos, e já estou a ganhar juízo?

(Provavelmente é apenas o saber de experiência feito. Por causa daquela vez em que fiquei de frente ao Dudamel a vê-lo dirigir a segunda de Mahler, e a seguir fui ao late night com o Rattle e a Barbara Hannigan. Eles foram excelentes, mas foi uma péssima ideia, porque não conseguia ouvi-los - ainda estava no concerto anterior. O eco daquele Mahler precisou de vários dias para se resolver dentro de mim.)

(Por outro lado, é o Trifonov. E o nº 2 de Rachmaninov. Aaah, pudesse eu não ter laços nem limites...)


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