15 março 2016

"quintal"

(Lembram-se de ter falado há tempos de um grupo de enciclopedistas que há no facebook?
A palavra de hoje é "quintal".)

A casa onde eu nasci (quer dizer, para onde fui quando saí da maternidade) (por acaso não sei se a minha família ainda vivia num apartamento, e se mudou para a casa depois de eu nascer) (um dos problemas de já não ter pais é que se fica sem ter a quem fazer perguntas) ficava na saída de Braga para o monte Picoto. Agora é o centro da cidade, mas naquela altura era uma avenida muito sossegada, com moradias grandes (enfim, para meninas a três palmos do chão tudo é desmesurado) rodeadas de quintais sem fim. A nossa tinha o jardim do lado esquerdo, entre a casa e a garagem, o quintal do lado direito, e a pocilga e o tanque (e o sítio onde se deitava o lixo) por trás da casa. Nós dizíamos "jardim" e "quintal", mas estava tudo coberto pela mesma camada diversificada e alta de ervas. Era a nossa savana, tivemos lá muitas aventuras fantásticas.

Um belo dia de primavera, tinha eu sete anos e o meu irmão mais novo uns três ou quatro meses, a minha mãe disse-me que ia num instante à mercearia, e que eu ficava a tomar conta do bebé, que estava a dormir no berço. Muito consciente da minha responsabilidade fui espreitá-lo, e espreitei-o com tanto empenho que ele acordou. "O bebé acordou", pensei eu, tal e qual como a Anita Mamã, e fiz tal e qual como ela: levei-o para o ar fresco. Para o quintal, claro. [Não se preocupem, esta história acaba bem] [enfim, quase] Pousei o meu embrulhinho precioso na erva, disse-lhe as palermices que é costume dizer aos bebés, e depois lembrei-me que a minha boneca também precisava de ar fresco. Fui a casa buscá-la num instante, mas ela estava a dormir nua na sua caminha. Procurei a roupa adequada para lhe vestir, não fosse apanhar uma constipação. Infelizmente, não me lembrava onde tinha deixado a roupa, de modo que procurei e procurei, entretanto reparei que as gavetas da minha própria roupa estavam muito desarrumadas e deu-me uma febre de limpeza de primavera. Estava a dobrar as cuecas muito bem, uma após a outra, quando tocaram à campainha. Era a minha mãe, que foi espreitar o berço e voltou muito aflita: "onde é que está o bebé?" e eu, a bater com a mão na testa, "ai!", e a sair disparada para o quintal. Ainda lá estava, muito sossegadinho.

Nesse verão os meus pais arranjaram um jardineiro para limpar o jardim e o quintal, e disseram-nos que ele encontrou várias cobras. "Gulp", pensei eu com uns meses de atraso.

Anos mais tarde alguém deu com a língua nos dentes, e contou esse episódio ao meu irmão mais novo. Ainda hoje não me perdoou eu tê-lo abandonado no meio das cobras. [Esta é a parte da história que não acaba assim tão bem]


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