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Esta semana, numa conferência de imprensa, os chefes da VW reconhecem erros graves no funcionamento da empresa e anunciam mudanças estruturais em curso, incidindo tanto nos processos como na mentalidade da empresa, mas o Jornal de Notícias não tem mais que fazer senão produzir este título: "Volkswagen culpa falta de ética de trabalhadores pela fraude das emissões de gases".
O resultado é as redes sociais infestadas de comentários sobre "quem se lixa é o mexilhão", "por este andar daqui a nada o culpado é o porteiro", "ganham milhões e nem sequer se responsabilizam pelas asneiras que fazem".
Um pequeno resumo do que está em causa: a VW fez uma trafulhice monumental. Quando se descobriu, o seu presidente executivo foi para a rua, e foi nomeado outro, escolhido entre a prata da casa (talvez fosse mais adequado dizer "a lata da casa").
Os danos calculam-se nos muitos milhares de milhões, sem contar a perda da imagem. Note-se que, se a VW falhar, não apenas a economia alemã vai ao charco, como haverá repercussões gravíssimas em muitas outras economias, nomeadamente a portuguesa.
O que foi importante na conferência de imprensa dada esta semana:
- Reconhecer que houve uma cadeia de falhas que levou a esta situação, e que ia desde a falta de comunicação à existência de uma inaceitável prática de tolerância nos processos;
- Revelar que o erro começou em 2005, com a decisão das chefias de avançar para o mercado americano, sem terem consciência de que os carros não cumpriam as normas, e sem haver nas bases da hierarquia alguém que tivesse coragem de informar sobre essa impossibilidade (não disseram, mas a gente percebe a cena nas entrelinhas: os directores completamente vidrados naquele objectivo, e ninguém a um nível mais baixo com coragem para lhes dizer que não é possível. O pessoal obedeceu à máxima "não me tragam problemas, tragam-me soluções", e arranjou maneira de cumprir os objectivos dos chefes. Mal ou bem, fizeram o que lhes era pedido: vender carros a gasóleo no mercado americano. Pode ter sido assim. Também pode ter sido feito com a conivência, ou até por sugestão, de algum chefe. O processo de investigação está em curso. A seu tempo saberemos.);
- Reconhecer que é preciso aprender com os erros do passado para tornar a empresa melhor;
- Aproveitar a crise como catalisador para fazer a mudança que é fundamental para a empresa;
- Reduzir os níveis hierárquicos e permitir que os trabalhadores critiquem algo na empresa ou apontem os próprios erros sem temerem retaliações ou castigos;
- Os investigadores devem sentir que têm liberdade para ser criativos e para falhar;
- A empresa tem de aprender a ser humilde (mas também: as práticas de toda a indústria automóvel, no que diz respeito às medições, têm de ser mudadas - e a VW, claro, hehehe, vai apontar caminhos);
- Os trabalhadores da VW querem voltar a sentir orgulho na sua empresa;
O que é novo: os directores que ganham milhões para trabalhar numa torre de marfim, virados para a bolsa e sem a menor ligação à realidade da própria empresa, deram-se conta de que este alheamento é suicida. Perceberam que, se quiserem sobreviver, é preciso mudar a mentalidade, a comunicação e a organização do trabalho na empresa. É a primeira vez que vejo isso dito com tanta clareza pelos senhores dessa casta.
Estas mudanças vão ter repercussões em todas as outras grandes empresas. Haverá um reajustamento em todas, porque o escândalo da VW já permitiu ver quais são as consequências das torres de marfim.
O problema, diga-se de passagem, existe não apenas em muitas dessas empresas gigantescas, mas também no Estado. A catástrofe do aeroporto de Berlim reside em grande parte no facto de o antigo Presidente de Berlim, o Wowereit, ter feito daquele projecto técnico um objecto de status político, e ter afastado das equipas todos os técnicos que lhe diziam que estava a sonhar o impossível. Só ficou quem lhe dizia que sim, e o resultado é um aeroporto que devia ter aberto em 2012 e ainda não se sabe quando vai abrir.
De modo que o que aconteceu na conferência de imprensa da VW, esta semana, foi um sinal de enormes mudanças nas empresas alemãs - se forem realmente levadas a cabo, parece-me uma óptima notícia. Mas o JN tira dessa conferência de imprensa uma frase secundária, e que se destina meramente a tentar limitar os estragos na imagem. Foram estas as palavras do Pötsch que deram origem àquele título: "Continuamos a acreditar que provavelmente só houve um número reduzido de trabalhadores a colaborar realmente, e de forma activa, nas manipulações."
A partir disto, o JN faz um título bombástico, provocando em Portugal uma onda de reacções sarcásticas e derrotistas. Em vez de informar sobre o que está a acontecer na VW, este jornal reforça as ideias de que os lá de cima são todos iguais, não fazem nada, só se enchem de dinheiro, e no fim a culpa é sempre dos desgraçados que não se podem defender.
O JN tenha paciência, mas isto não é jornalismo, e não tem nada de serviço público. Não é a alimentar artificialmente o derrotismo de uma população que se constrói um país saudável.
4 comentários:
De uma forma geral a probabilidade de uma pessoa mentir aumenta muito quando a pressão sobre ela ultrapassa um certo limiar. As organizações oscilam assim entre a complacência, quando a negligência é tolerada, e o secretismo quando a concorrência entre os trabalhadores é demasiadamente estimulada e as punições por falhas são excessivas.
Depois de ler o seu post fiquei a pensar que é realmente possível que o número de pessoas directamente envolvidas fosse relativamente pequeno. Mas a alta direcção tem uma responsabilidade imensa no que aconteceu dado que criou um ambiente que estimulou esse tipo de comportamento.
Fez-me lembrar a epidemia de SARS (Severe Acute Respiratory Syndroma) na China que assumiu grandes proporções porque os responsáveis do sistema de saúde chinês não queriam dar más notícias aos seus chefes.
Aparentemente a Alemanha estava mais protegida quando a cogestão era mais forte. Grandes desigualdades no poder de decisão e nos níveis de remuneração levam a este tipo de problemas.
Parece que neste caso ocorreram os dois, simultaneamente: uma tolerância generalizada perante a negligência, e o medo de apresentar resultados aquém dos desejados pelas chefias. Por saberem que a empresa tolerava "truques", e por terem medo de dizer às chefias que era impossível fazer o que elas queriam, alguém terá decidido fazer mais um truque.
É uma versão plausível.
A outra, bastante plausível também, é a de que algum dos chefes tenha dado ordens nesse sentido.
O caso está a ser investigado por uma equipa de mais de 500 pessoas. A ver vemos que resultados dará.
Há tempos um amigo, que trabalha numa dessas empresas enormes que estão orientadas para a bolsa, contou-me que foi a uma reunião a um nível já bastante próximo da "torre de marfim", e falou abertamente sobre os problemas. Ficaram todos a olhar para ele com ar de quem não queria ouvir. Ele foi o único que teve a coragem de pôr os nomes aos bois. Mas não recebeu elogios por isso. Pelo contrário.
A outra questão, para além de as chefias não quererem saber dos problemas, é mesmo a destruição da cultura empresarial tradicional (como a cogestão, de que falou) por causa da miragem da bolsa.
Isto é tudo um desvario.
Espero que os da VW tenham aprendido a lição.E os outros também.
começando pelo fim, uma equipa de 500 pessoas não vai apresentar resultados qualitativos. o que vai aparecer é uma enciclopédia de boas práticas, que ninguém irá ler.
no que refere ao cumprimento de normas a assunção do erro, não seria má ideia irem ao Japão, à Toyota ou à Datsun, para aprenderem a fazer controlo de qualidade. lá, o operário menos graduado tem plenos poderes para mandar parar toda uma linha de montagem se notar algum defeito grave na montagem...
depois, como a helena refere, há, para ajudar, a doença das cotações bolsista. é para lá que vai toda a atenção do CEO. nada mais errado.
quando leio que o senhor responsável por esta história ainda vai receber, ou já recebeu, mais de 25 milhões de euro é um insulto ao bom senso e à moral. mas, infelizmente isso não é um problema alemão. infelizmente, está disseminado por muitos países.
só para que conste, não sou comunista. trata-se sim de uma questão moral.
escrevi demais, sorry!
Tanto quando percebi, são duas equipas de inquérito: uma interna da empresa e outra, de uma companhia americana, externa à empresa e a trabalhar com total independência da equipa interna.
Pelo que eles dizem, o objectivo destas duas equipas é averiguar esta fraude e apontar os culpados.
Parece que querem apresentar os resultados em 21 de Abril de 2016. Já não temos de esperar muito para saber o que resultará deste trabalho.
Eles falaram mais num espírito Silicon Valley. Não vi em lado nenhum uma referência ao Japão. Mas é uma boa ideia.
Se me deixassem mandar ;) fechava as bolsas.
E sobre os 25 milhões não digo nada. O homem está a ser investigado pela Justiça alemã, de modo que está entre uma reforma milionária e um lugarzinho numa prisão. A ver vamos.
Não falou demais coisa nenhuma! Obrigada pelo comentário.
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