01 abril 2015

ser Charlie - um exemplo para debate


"Hetze" é uma daquelas palavras alemãs que não se consegue traduzir bem (talvez: acossar ou acosso), e que ultimamente tem sido muito usada.
Para tentar chegar lá com exemplos, aqui vão alguns títulos do "jornal" Bildzeitung sobre a Grécia e a crise do euro:

- "Tirem o Euro aos gregos!"

- "Gregos: mais ricos que nós!"

- "O russo ou o grego: qual deles é mais perigoso para nós?" (note-se que escrever "Russe" e "Grieche", como apareceu nesse título, é uma escolha que vai beber directamente à retórica nazi)


O Bildzeitung tem sido alvo de duras críticas por fazer campanhas de Hetze. E não é de hoje. Já contei aqui, há muitos anos, que vi um cliente de uma tabacaria a protestar alto e bom som "não tem vergonha de ter à venda um jornal com xenofobia descarada na primeira página?!" A dona da loja balbuciou alguma coisa sobre a liberdade de expressão, e o cliente saiu porta fora, irado.
Há cerca de um mês, quando esse jornal iniciou uma campanha de selfies com a primeira página do jornal, onde se lia "NÃO! Não vai mais nenhum milhar de milhões para esses gregos gananciosos!", foi muito criticado pela Associação de Jornalistas Alemães, que lhe lembrou que há uma grande diferença entre informação jornalística e criação de campanhas para pressionar os políticos.

O episódio mais recente de protestos deve-se ao espectáculo indecoroso que o Bild tem feito à volta da tragédia do avião Germanwings. Entre outras vergonhas, publicaram logo no momento em que se soube da tragédia um texto que vomitava assim:
"Queridas vítimas da queda do avião,
na sala da chegada o tapete das bagagens, que devia trazer as vossas malas, não se mexe. Normalmente há grande agitação - empurrões para chegar às mochilas, às Samsonites. O tapete em Düsseldorf não se move porque os mortos não recolhem a sua bagagem. Os mortos e as malas estão espalhados nos Alpes franceses. No avião havia dois bebés e uma turma alemã regressava de um programa de intercâmbio escolar."
Agora começaram a Hetze contra os pais do piloto. Fotografam a casa deles, juntam uma fotografia do filho, e perguntam cinicamente em letras garrafais: "O que passará pela cabeça destes pais? O próprio filho, um assassino em massa. Como é que os pais do piloto amok Andreas Lubitz conseguem viver com esta realidade?"
As pessoas reagem. Dizem que o processo ainda está em curso, que ainda é cedo para tirar todas as conclusões. Além disso, para os alemães, que prezam imenso o respeito pela esfera privada das pessoas, fotografar a casa dos pais e publicar por extenso o nome de um alegado culpado (quando o normal é escreverem apenas a inicial do apelido - por exemplo, o adolescente que em Winnenden matou 15 pessoas e a seguir se suicidou era o "Tim K.") vai muito além do que é aceitável.

A reacção: cada vez mais postos de venda estão a boicotar o Bild. Começou com uma estação de serviço que deixou um aviso, no sítio onde costumava estar esse jornal, informando que se recusava a vender um jornal que faz campanhas de Hetze. Outras lojas seguiram-lhe o exemplo. Uma delas foi ainda mais longe: deu o correspondente do dinheiro que deixou de ganhar com a venda do Bild a uma associação de ajuda às vítimas de esclerose múltipla (imagino que queiram limpar a consciência de culpa de terem ganho algum dinheiro a vender aquele lixo).

Sim, claro, Charlie e tal.
Mas, antes de mais, Charlie é sátira, o que é diferente de jornalismo. E mesmo a sátira tem limites. A melhor frase que li a respeito disso é esta (de um artigo que hei-de traduzir e publicar aqui quando tiver mais tempo): "O autor satírico é um idealista frustrado. Quer um mundo melhor, e irrita-se com as falhas deste. Por isso faz trabalhos satíricos a pôr o dedo na ferida."
Aí está: a própria sátira está enquadrada por valores éticos. Não vale tudo.

No caso do jornalismo, e justamente porque todos somos Charlie, só posso aplaudir que a população levante a voz para protestar contra jornais que abusam do poder do jornalismo e da liberdade de expressão.

Mas acredito que outras pessoas tenham outra opinião (nomeadamente os consumidores do Bild).
Dá um belo debate:
Seria eu capaz de me deixar matar para o Bild ter o direito de fazer aquelas capas horrorosas? Desculpa, Voltaire, mas não. E tu, provavelmente, também não.
Seria eu capaz de fazer uma fogueira com o Bild numa praça central de Berlim, para o queimar de forma exemplar? Não. Mas não teria dúvidas em forrar o meu caixote do lixo com ele, se o tivesse cá em casa.
Devo passar a responsabilidade de corrigir desvios para o sistema de Justiça, esperando que alguém processe e que os tribunais resolvam, caso a caso? Ou há uma parte do trabalho de defesa da Democracia que pode ser realizado pela participação activa e pacífica - nomeadamente: acções de debate e de crítica - da população?
Recusar-se a vender um jornal é um acto de censura? Ou os donos das lojas podem e devem decidir livremente sobre os conteúdos que vendem?


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