Visito os amigos, eles dizem "a tua alegria faz-nos bem", rio-me e respondo "fazemos entregas de alegria ao domicílio", mas surpreendo-me sempre: pois se são eles quem me faz bem!
Falamos muito - e muito mais do que falo com os amigos alemães. Conversa puxa conversa, confiança puxa confiança, trocamos palavras boas.
No princípio era o Verbo. Penso muito nisso: a palavra tem uma força que pode ser criadora ou devastadora. E nós, seres de palavra, temos o poder de alargar horizontes alheios ou, pelo contrário, prender as pessoas em sentenças como grilhões. Ou no silêncio, a pior prisão.
(Com os filhos, por exemplo. Dizemos "desce já dessa árvore, que vais cair!" ou "tens de estar muito atento às tuas forças, para te poderes segurar sempre"?)
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Junto à Gulbenkian há um café onde também consertam bicicletas, uma oficina de bicicletas onde também servem cafés. Entrei, pedi duas empadas e dois cafés, perguntei se me faziam desconto de grossista por estar a comprar em tais quantidades.
- Se trouxesse bicicleta, tinha 10% de desconto.
- Tenho 4 em casa, faz-me 40%?
- Não fazemos descontos ao domicílio.
Ainda agora me estou a rir. Parece-me que sei qual vai ser o meu café preferido em Lisboa.
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Tenho de me acautelar da luz excessiva de Lisboa: põe-me a ver a preto e branco.
De repente imagino-me a morar no Chiado. O Joachim vai mais longe, combina com amigos uma república de velhotes. Se é para morrer, quero morrer contigo...
Sonhemos grande: a piscina partilhada com os vizinhos, a sala multiúsos para dar explicações à miudagem das redondezas, para tomar conta de alguma criança enquanto a mãe tem de ir não sei onde num instante, os saraus culturais.
Mas depois lembro-me que se é para morrer também quero morrer com os amigos do Porto, e com os alemães, e depois lembro-me do sistema de saúde alemão...
(a vida com todas as suas cores complica um bocadinho)
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Meto-me na culinária da saudade (ah, lampreiada!), exagero, passo vergonhas. Trespasso vergonhas, porque é a minha amiga que vai de café em café a perguntar se também têm aguardente.
Por fim encontrámos um: aguardente caseira, oferta da casa, nada má por sinal, a lampreia conforma-se com o seu destino de ser digerida, eu finalmente livre para me fazer toda ouvidos.
(Hei-de ver se o meu otorrino me receita uma daquelas mezinhas homeopáticas com álcool, vou explicar-lhe que é muito bom para ouvir melhor.)
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Almoço com amigos de há mais de trinta anos. Estamos ainda mais iguais a nós próprios que na altura em que nos conhecemos. A idade liberta, torna-nos mais cristalinos, e eu fico com uma vontade enorme de aproveitar mais vezes a Ryan Air para ir almoçar e rir com eles.
(sim, eu sei: em termos de factura ecológica, estamos conversados - mas sonhar ainda não é poluente)
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A senhora que limpa as mesas indicou-me onde ficava o café Vera Cruz, dizia "Bieracruch", por momentos pensei que me indicava o café errado. Precipitei-me no chá verde de menta, depois pedi o "luz da manhã" (chá branco, flor de laranjeira e citrinos). Enquanto preparava o chá, a vendedora falou-me do seu favorito, o "oito delícias sensuais", deu-mo a cheirar. Tenho de voltar ao Bieracruch.
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Li na rua das Flores: "olha esta sostra a laurear a pevide". Da próxima vez que estiver no Porto, hei-de voltar ao Bolhão. Quero lembrar a rudeza alegre e desbragada do falar. Talvez aprenda algo novo.
Estranho os livros que agora se escrevem em Portugal, repetem sempre os mesmos palavrões. Não é assim, pessoal, não é assim. E eis como descubro mais um nicho de mercado: workshops de criatividade no Bolhão. Para subir o nível da literatura nacional.
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Encravada com uma amiga num engarrafamento matinal, olhamos em volta e fazemos apostas: quem está a ouvir o Ricardo Araújo Pereira na Rádio Comercial? Os que se estão a rir, apesar do engarrafamento descomunal.
(Esta é a amiga que me gravava o Hermann José em cassetes, há 25 anos. Depois, parada numa auto-estrada alemã, eu ria como uma maluquinha no meio de condutores que olhavam com má cara para o meu riso.)
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Haverá algo melhor que ir para o trabalho ao som das piadas do Ricardo Araújo Pereira? Há: ir para o trabalho ao som das piadas do Ricardo Araújo Pereira, e passar pelo rio Douro prateado de neblina e sol.
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A empregada de limpeza sai da casa de banho das mulheres, pergunto se já posso entrar.
- Não, vai ter de esperar um bocadinho.
- E à dos deficientes, posso, ou também acabou de a limpar?
- Ai a essa, não! Pode vir aí um deficiente a correr!
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Quem é que se lembrou de pôr a Padaria Ribeiro e a Leitaria do Paço no mesmo largo? Haviam de ficar a pelo menos três quilómetros uma da outra, para uma pessoa conseguir desmoer pelo caminho os aplicados estudos de culinária portuguesa.
(ao menos, havia de haver entre as duas um café a servir aguardente caseira homeopática)
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Agora que os filhos saíram de casa, estranho a minha nova liberdade. Por não ter de me sujeitar ao calendário de férias escolares, fico sem saber em que altura quero ir a Portugal. Nem sequer sei o que fazer com tanto tempo disponível nos cenários por onde estou habituada a passar a correr. Faço um ponto da situação, decido que saberei reinventar-me a partir deste excesso de liberdade.
Um SMS chama-me à razão:
"Quando voltas, mãe? O Fox já não aguenta mais!"
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Já estou em Berlim, mas ainda não cheguei.
3 comentários:
Cara,
As piadas do RAP, hoje em dia, são como as galinhas; piam, piam, piam mas não dizem nada.
Acha, José Neves?
Eu fartei-me de rir. Alguns condutores ao meu lado também se estavam a rir bastante. Parece-me que já temos quórum para afirmar que as piadas do RAP naqueles dias cumpriram o seu objectivo.
(Uma foi sobre o vício da raspadinha, outra foi sobre as asneiras que fez quando era pequeno.)
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