23 fevereiro 2015

o que cabe num fim-de-semana

Neste fim-de-semana jantei com duas mulheres fantásticas, conheci um blogger que admiro há mais de dez anos, e descobri que na vida real é ainda melhor do que eu o imaginava. Não conseguimos resolver os problemas todos de Portugal, mas não nos falhou a alegria. Tive de fotografar a ementa do dia para a poder traduzir à mesa.


Fui à padaria com o Fox à hora a que as crianças da vizinhança se agitavam de campainha em campainha a chamar os amigos. Quando ia pagar os croissants chegou um novo tabuleiro acabado de sair do forno. A senhora trocou os que me ia dar pelos quentinhos. Comprei mais dois, para os vizinhos que nos fazem dog-sitting. Passei pela casa deles, o Fox levou uma demão de festinhas. Avisaram-me alegremente que ainda havemos de nos encontrar num tribunal de família para decidir sobre a guarda do bicho. Voltei para casa, a rua já estava por conta das crianças - de bicicleta, triciclo, trotineta, bicicleta sem pedais, skate. Sábado de manhã, sol, gritos alegres. Nem parecia que estamos em Berlim no séc. XXI e em Fevereiro.
Ao pequeno-almoço prometeram-me um belo apoio para o Cinemagosto (até me lembrei do Varoufakis, hei-de revelar-lhe o poder de um croissant quentinho e estaladiço).
Fui a casa do vizinho, para aprender a cozinhar perna de javali júnior. Agora sei como se faz, é muito simples, começa assim: "Compre na e-bay uma panela oval de ferro fundido usada, por 80 euros..."
Encontrei a página da Sabine Platz na internet (a brincalhona que recriou os 50 shades of Grey com o dono de uma loja de ferragens) e escrevi-lhe uma mensagem elogiosa e grata. Pouco depois estava a receber uma resposta escrita de forma simples e pessoal. Adoro gente sem peneiras.  
Fomos a uma feira de vinhos. Atraquei no cantinho do Super-Ibérico, entre o presunto Pata Negra e os pastéis de nata a sair do forno. Deram-me a provar vinho do Porto com 30 anos. Entre outros, entre outros, entre outros, hic. A companhia estava óptima, adoro feiras de vinho: estão todos um bocadinho tocaditos, bem-dispostos e inconvenientes q.b.
Deram-me os restos mortais do Pata Negra para fazer uma feijoada, mas a verdade é que ainda vinha bastante vivo.
Passei por um japonês que estava a fazer sushi "New York style" (o salmão ligeiramente grelhado com um maçarico), e estava delicioso.



Parei num vendedor de salamis de carne de vaca, um homem muito engraçado. Tinha salamis para meninas bem-comportadas (mas ofereceu-se logo para dar o seu número de telefone), salamis perigosíssimos ("porquê?" "porque tem poderes afrodisíacos, as pessoas provam-nos e querem logo casar comigo"). Comprei o melhor de todos, e vim de lá com noivo. 


Depois da feira queríamos ir todos jantar a um italiano (recomendo: Italo Cafe) mas o vizinho lembrou-se que não tinha programado o forno para se desligar sozinho, e tinha de voltar para casa para salvar o javali. Eu lembrei-me do Fox, que estava há mais de dez minutos sem mim, e queria voltar também. Mas não foi preciso, porque o vizinho disse que podia cuidar do javali e do Fox.
Um sábado atulhado de gente boa.

  

No domingo o Joachim deixou-me junto ao memorial do Holocausto e seguiu para a sessão de pintura. Enquanto atravessava o memorial ocorreu-me a canção de embalar que dizem que a Ilse Weber cantou às crianças quando entravam na câmara de gás. A parte do vento a tocar na lira e da lua feita lampião ainda dá para aguentar. Mas a terceira estrofe dá cabo de mim: "oh, que calmo está o mundo / nada perturba este doce sossego / dorme, menino, dorme também tu / oh, que calmo está o mundo". O que mais me comove nos relatos do Holocausto são os sinais de humanidade e dignidade que brotam daqueles despojados que enfrentam o horror e a morte.


Berlim é uma cidade curiosa: junto ao memorial do Holocausto há uma vinha e um elogio ao vinho, e logo a seguir vem o Café Balzac com os seus bolos deliciosos. A vida continua?
A minha continuou: à espera do Godot, em frente a um belo naco de Schoko-Karamell-Shortbread.


Para encerrar a exposição "Violins of Hope" organizaram uma sessão pública com o proprietário da colecção e os organizadores da exposição. O Amnon Weinstein emocionou-se ao falar do pianissimo que, no Adagietto da 5ª de Mahler, os músicos dirigidos por Simon Rattle conseguiram fazer nascer daqueles violinos inertes há meio ano. Não entendi, mas no final explicaram-me: é preciso tocar os instrumentos regularmente para a madeira manter as vibrações. O Jordi Savall diz que o difícil é conhecer o ponto certo: nem de menos, para o instrumento não ficar "opaco", nem demais, para ele não se cansar. Sempre que falo com músicos de instrumentos de cordas fico com a sensação de estar numa sub-secção do Harry Potter.



A colecção do Amnon Weinstein foi enriquecida com um novo violino, que lhe ofereceram em Berlim. Um pedaço de História alemã: era tocado numa orquestra de comunistas, em Wedding. Apesar das muitas rusgas que os SS e os outros criminosos paramilitares faziam às salas onde eles davam concertos, o violino conseguiu escapar inteiro a todas as cenas de pancadaria. Agora vai para Telavive. Gosto muito do simbolismo deste misturar de Histórias, de trazer a Berlim os violinos expulsos pelos nazis, e de guardar um violino comunista berlinense ao lado de outro que tocou em Auschwitz. 
Acabámos a conversar com o organizador da exposição, que elogiou os desenhos que o Joachim fez durante o concerto, e quase lhe pediu os originais. O Joachim aproveitou para se queixar da megera de mulher que tem, que odeia ouvir o seu lápis durante os pianissimos, e o outro passou-se para o lado dele e disse que não tem mal nenhum, que muito pior são as tosses, o restolhar dos programas, as pulseiras das senhoras. Estou a ver que vou entrar para o lado errado dos anais da Filarmonia...
Daí a nada estávamos a conversar alegremente com a família Weinstein. O filho contou que esteve em Portugal uma vez, quando vinha de barco à vela dos EUA até ao Mediterrâneo. Em Lagos queria muito comer humus, e encontraram uma loja que vendia, mas que fechava às 20:00. Eram 20:01, e o empregado recusou-se a vender o humus que tinha ali à sua frente. "Era alemão!", disse o Joachim. "Da próxima vez, tente ter antes desejos de bacalhau", disse eu, sempre em busca de soluções fáceis.
Depois viemos para casa com amigos roer o resto do presunto, e fomos jantar o javali com os vizinhos.
No fim disto tudo, prometeram ao Joachim uma garrafa de vinho do Porto com 150 anos.
(Vou ver se não o chateio nos próximos concertos, pode ser que sobre um copinho para mim.)


6 comentários:

calita disse...

O que é isto, Helena? Está aqui uma pessoa decidida a permanecer neste pedaço cariado da Europa, derivado ao facto de ter chegado àquele momento em que está demasiado velha e com crianças demasiados pequenas (talvez a segunda, seja a causa da primeira) para mudanças, e vens tu com estas descrições maravilhosas de Berlim!

Helena Araújo disse...

Calita, nunca é tarde para mudar. Outro dia conheci uma compositora judia com mais de noventa anos que fugiu do Holocausto, acabou por viver quase toda a vida em Nova Iorque, em aos 85 anos resolveu regressar a Berlim. Perguntaram-lhe: "e os seus amigos?"
Respondeu com um sorriso gaiato: "oh, agora estou no facebook!"
(os teus filhos pequeninos não seriam o problema - a mais velha, sim. Os meus vieram para cá com 10 e 13 anos, e detestaram, no princípio.)

Gi disse...

Hehehe pergunta ao Joachim se no hospital dele não precisam de uma cirurgiã plástica sénior que está a tentar aprender alemão ;-)

Gi disse...

Sabes o que me faz mais nostalgia? As crianças na rua, de trotinete, bicicleta, skate... Cada vez vejo menos crianças em Portugal, e as que vejo estão agarradas aos gameboys.

Helena Araújo disse...

Do que mais gosto na minha rua é dos gritos da criançada a brincar cá fora nos dias em que não chove. :)

Helena Araújo disse...

Gi, tens a certeza que queres vir trabalhar para aqui? Eles têm horários de umas boas 50 horas por semana, sem pagar horas extraordinárias...