Ontem tivemos a visita de um amigo querido, cujo sogro morreu na semana passada.
Trouxe um presente preparado pela sua mulher, com um postal onde se lê:
hoje estamos encerrados por motivos de ontem
É assim que se sentem.
Falámos muito sobre esses últimos momentos, numa conversa tão comovedora como interessante. No nosso tempo evita-se o tema da morte, e muitos de nós não sabem o que fazer perante um moribundo, nem como fazer o trabalho do luto, nem sequer com as meras questões de organização que a morte de um familiar implica.
Por isso, e em jeito de testemunho, tento passar para aqui o que ele nos contou:
A saúde do meu sogro já estava a piorar há muito tempo, e nos últimos meses juntou-se a senilidade. Teve de ficar internado durante seis semanas num lar, enquanto a minha sogra recuperava de uma cirurgia, mas voltou num estado tão miserável que a minha sogra jurou que nunca mais faria a mesma asneira, e que ele seria cuidado em casa até ao fim dos seus dias. Ainda puderam festejar o 60º aniversário do casamento, e ele aguentou bastante bem, apesar do esforço enorme. Convidaram amigos que tinham estado presentes no dia do casamento, e pudemos rir com as recordações daquele tempo. Depois disso, o seu estado piorou a olhos vistos. A minha mulher pediu à mãe que a avisasse quando visse que estava a chegar a hora, porque sabia que para os pais a morte era um tabu, e a mãe não saberia o que fazer nesse momento.
A minha mãe é bem diferente: há tempos entregou-nos um dossier com todas as informações de que precisaremos um dia que ela morra. Tirou um formulário da internet, e preencheu-o com todos os detalhes: o que fazer nas primeiras 24 horas após a morte, nas 72 horas seguintes, etc. Quem deve ser convidado para o funeral (vai-nos actualizando esta lista regularmente). Que tipo de funeral quer ter - inclusivamente os cânticos. Quais são os seguros, as contas bancárias, as ordens de transferência automática que tem. É um grande favor que nos faz: um dia que morra, não nos deixa atrapalhados à procura da documentação por todos os lados, nem a tomar decisões importantes sob imensa pressão. Está ali tudo muito bem organizado, com todas as informações e indicações necessárias.
Quando a minha sogra telefonou a dizer que ele estava a ficar muito mal, fomos logo para a cidade deles, e os nossos filhos vieram ter connosco - excepto a mais nova, que está na Austrália. Ele estava mesmo sem força, mas ainda nos reconhecia e entendia o que lhe dizíamos. Ficamos de volta dele o dia todo, lembrando momentos bonitos da nossa vida, cantando, recitando salmos. Ao dizer o salmo 23 (O Senhor é meu pastor, nada me faltará. Leva-me a repousar em verdes prados, conduz-me às águas refrescantes e reconforta a minha alma.) enganamo-nos numa frase, e ele fez uma careta. A minha mulher passou a noite com ele e a mãe. No dia seguinte estava relativamente bem. Tivemos de nos despedir para voltar para o trabalho. Cada um de nós pôde entrar sozinho no quarto dele, para se despedir sem testemunhas. Telefonámos para a Austrália, para a neta mais nova lhe dizer umas palavras. Os netos disseram-lhe que podia partir descansado, que eles cuidariam da avó. Regressámos a casa, e a meio do caminho a minha mulher telefonou a dizer que tinha morrido.
À hora a que o enterramos, na Austrália a nossa filha mais nova foi para a praia com uma vela, e ficou a olhar para as estrelas.
5 comentários:
Emocionei-me. Não gosto de pensar na morte, aflige-me muito. Mas acho que era assim que gostaria de morrer.
Nem queiras saber o que eu tive de me aguentar ontem para não desatar a chorar.
Por ser para ti, conto mais uma história: a mãe de um amigo meu estava a morrer, e a neta, de cinco ou seis anos, estava a chorar: "eu não quero que a minha avózinha morra!"
A médica disse-lhe "Morrer é muito difícil, e tu estás a tornar as coisas ainda mais complicadas para a tua avó. Ela precisa da tua ajuda para partir. Queres ajudar?"
Deveras impressionante. Mas o que mais me impressiona é a segurança com que os familiares se "despediram" dele, como se tivessem a certeza de que ele iria morrer. Creio que, no mundo real, as pessoas nunca têm tanta certeza assim de que as outras vão morrer.
Admirável também o exemplo da sogra, que tem tudo arranjado para quando morrer os familiares saberem tudo o que fazer. Todas as pessoas deveriam pensar em fazer o mesmo.
Também me emocionei. Não tanto pelos familiares mas pelo doente, que obviamente aceitou que ia morrer e que toda a gente sabia.
Geralmente as pessoas negam a morte. Se por elas mesmas se pelos outros, não sei.
Na Alemanha costuma-se ser honesto com isso. Os médicos não "poupam" os doentes, omitindo-lhes a verdade.
Aceitar a morte e olhar para ela de frente é muito mais humano, parece-me. A pessoa morre acompanhada, e de contas feitas com a vida.
Há tempos li livros sobre isso - sobretudo sobre a necessidade de olhar de frente para a morte e poder despedir-se de todos. A Marie de Hennezel tem trabalhos muito bons sobre isto.
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