05 dezembro 2014

perigo!






As nossas cidades estão cheias de pessoas sem abrigo que tentam esconder a sua condição. No lago ao pé da minha casa, nos dias quentes de verão, via alguns deles. Sorria-lhes e cumprimentava-os - quem sou eu para lhes negar essa última réstea de normalidade e pertença?

Por sorte, em Marselha há gente muito amiga dos sem-abrigo. Para os ajudar, resolveram dar-lhes um cartão com um triângulo amarelo, para eles terem em lugar visível, e escreverem no verso o seu nome, grupo sanguíneo, alergias, doenças. A ideia é que, em caso de necessidade, os serviços hospitalares lhes possam prestar auxílio com o máximo de eficiência.

Um triângulo amarelo para ajudar os mais desamparados da nossa sociedade.
Quem terá sido o autor de tão brilhante ideia?

Amarelo era a cor com que os leprosos, na Idade Média, se faziam anunciar. Uma faixa amarela e um sino: fujam todos! perigo!

Nos campos de concentração dos nazis havia triângulos para identificar o grupo a que o prisioneiro pertencia: presos políticos (vermelho), homossexuais (cor-de-rosa), testemunhas de Jeová (roxo), criminosos (verde), associais (preto). Preto era a cor do triângulo dos sem-abrigo (os vagabundos, os vadios, os preguiçosos, os inúteis - naquele tempo não havia depressões nem crises existenciais nem nada). Os mais perigosos, aparentemente, eram os judeus, a quem deram o amarelo para a estrela feita com dois triângulos.
Foi há apenas setenta anos.

Esta gente - esta gente que decide sobre a vida nas cidades e é paga com o dinheiro de todos para cuidar de uma vida melhor para todos - não lê? Não sabe História? Não tem cabeça para pensar?

Se me deixassem mandar - cuidado! perigo! - mandava que os autores desta ideia passassem a usar esse mesmo cartão em lugar bem visível da sua indumentária. Pura questão de igualdade: eles também podem ser atropelados, ou cair desmaiados algures, e é importante que os médicos saibam logo qual é o seu grupo sanguíneo, e se têm alguma alergia, se tomam certos medicamentos, se têm alguma patologia especial. E se querem ser dadores de orgãos. Especialmente o cérebro, que deve estar como novo, de tão pouco usado.

2 comentários:

CCF disse...

O que mais revoltante é o modo como tentam esconder medidas discriminatórias sobre um "alegado" interesse para a sociedade, nomeadamente questões de saúde que são associadas ao "perigo", é de quem sabe como vender coisas abjectas. É preciso denunciar sim.
~CC~

Helena Araújo disse...

Estou convencida de que eles queriam ajudar. Teriam boas intenções.
Mas o símbolo escolhido foi muito mau, e a falta conhecimento e de respeito que mostram pelas pessoas que queriam ajudar também é assustador.
Entretanto, já recuaram. Mas o trabalho tem de ser feito. Espero que se lembrem de algo menos chocante para poderem ajudar os sem-abrigo.