03 dezembro 2014

coragem cívica



* Há tempos a escola do Matthias castigou duramente os finalistas desse ano porque durante os festejos habituais do final do ensino secundário resolveram pregar uma partida de muito mau gosto: espalhar fezes à porta da escola. A direcção da escola decidiu que nesse ano não haveria entrega festiva dos diplomas, castigando todo o ano - porque, se foi feito apenas por alguns, os outros viram fazer e não os impediram. Quando explicou isto aos pais, o director de turma do Matthias lembrou que ainda há setenta anos as pessoas viam e deixavam acontecer, e que isto não pode repetir-se nunca mais: a História alemã espreita permanentemente as consciências.

* Um grupo de bêbedos entrou no metro e desatou a fazer estardalhaço. Quando um deles começou a urinar dentro da carruagem, um cunhado meu resolveu intervir - e levou uma tareia.

* O Matthias estava a passear o Fox no Ku'damm quando reparou que uns homens sentados na esplanada do restaurante grego começaram a fazer comentários em voz demasiado alta sobre o aspecto físico de duas miúdas que iam a passar. Ao passar por eles disse "das war jetzt unnötig" (em português, algo como "não havia necessidade"). O empregado de mesa, que também tinha participado no regabofe, desculpou-se dizendo que eles estavam bêbedos e não faziam por mal. "Talvez fosse boa ideia não beberem tanto", disse o Matthias, e continuou o passeio.

* A Christina estava numa manifestação contra a extrema-direita quando um neonazi veio meter-se no meio do grupo dela. Os antifas desataram a bater no neonazi, e a Christina começou a puxá-los para trás e a gritar: "se lhes batemos não somos melhores que eles!"

* Um amigo meu, num retiro espiritual, assistiu a uma cena muito embaraçosa durante o almoço, quando alguém começou a falar de Brahms e, perante a ignorância do seu interlocutor, exclamou em voz muito alta, muito chocado:
- O quê?! Você não sabe quem foi Brahms?! Como é possível?!
Fez-se silêncio em toda a mesa. A agressão contida na pergunta deixara todos estupefactos e inibidos. Até que alguém disse:
- Eu também não sei, mas vejo que o senhor é um especialista. Por favor, conte-nos mais sobre ele, parece muito interessante.

* Ia eu descansadamente pela rua a meio do dia, quando vi que no passeio em frente três rapazes batiam numa mulher. Sem pensar, larguei um "hei!" e atravessei a rua. A poucos metros deles enchi-me de medo, entrei numa loja pedindo que chamassem a polícia, e depois continuei a andar - enfim, devagarinho... - na sua direcção. Como não sabia nenhuma frase assertiva para lhes dizer, perguntei o que é que se passava ali. Um deles veio falar comigo, e começou a explicar. Em síntese: a senhora trabalhava na loja em frente à qual eles estavam a conversar, e saiu da loja para os mandar para outro lado. Eles chatearam-se, começou uma discussão, e às tantas um deles deu-lhe uma bofetada. Concedi que ela não tinha agido bem, mas nesse preciso momento um dos outros cuspiu na cara dela, e eu acrescentei: "mas isto também não se faz!" Ele concordou, foi ter com os outros e desapareceram os três.
Quando contei esta história mais tarde, todos me diziam que eu era maluca, que devia ter chamado a polícia e ter ficado longe. Sim, arrisquei-me a apanhar umas bofetadas - mas a verdade é que mantive uma certa distância de segurança: foi um dos rapazes que veio conversar comigo, não fui eu que me meti entre eles e a mulher.


A propósito da trágica morte da Tuğçe Albayrak tem-se falado muito em coragem cívica, como se isso fosse coisa que não existe. Contei aquelas histórias para mostrar que na Alemanha este já era um tema importante antes de ter acontecido a tragédia de Offenbach, e que o quotidiano está cheio de exemplos de pessoas que se arriscam, em maior ou menor grau, para prestar auxílio a outros. Falei de casos que me são próximos porque não conheço os outros - estas histórias não costumam vir nos jornais. Mas podia contar diversas histórias ocorridas com amigos nossos ou dos nossos filhos.
Acredito que todos, ou quase todos, temos um forte sentido de justiça e queremos ser cidadãos responsáveis e participativos. É certo que muitas vezes podemos ser tolhidos pelo medo da violência bruta (e não vou atirar pedras a ninguém, que bem conheço o estado dos meus telhados), ou travados pela preguiçosa esperança de que outra pessoa se ocupe do caso. Também sabemos que há por aí uma violência muitas vezes letal, e que ninguém pode ser obrigado a arriscar a sua própria vida para ajudar outros.

Hoje, dia em que esta vítima de uma violência tão descontrolada quanto gratuita vai ser enterrada, gostava de olhar para o debate sobre a coragem cívica a partir de outra perspectiva: como ajudar sem nos tornarmos nós próprios uma vítima?

Temos de aprender maneiras de gerir estas erupções de violência sem aumentar o risco da situação. As nossas acções têm de ser gestos de Paz. É essencial sabermos encontrar a palavra justa e pacífica que acalme os ânimos, em vez de humilhar, excitar e/ou irritar ainda mais o agressor.

A Tuğçe Albayrak morreu vítima de um brutamontes de cabeça perdida.
É fundamental ensinar a outras Tuğçes como agir nestas situações. Para que, a par dessa enorme e muito louvável generosidade, tenham estratégias que permitam travar a espiral de violência, em vez de a acelerar.

A frase do Matthias é um bom exemplo - passa pelos grunhos e, sem chegar a parar, deixa um pequeno comentário que os obriga a pensar. No caso da minha intervenção naquela rua de Weimar, o que ajudou a resolver o conflito foi eu não me sentir suficientemente segura em alemão para os insultar como queria (é um trauma antigo: eu a ralhar aos meus filhos, e eles a corrigirem-me a gramática...) - de modo que fiz perguntas simples, que permitiram que os rapazes sentissem que podiam ser ouvidos. Num livro sobre diálogo não-violento encontrei um exemplo completamente inesperado: um homem vai violar uma mulher que está a fazer o turno da noite numa loja, e ela diz "você está mesmo zangado!" Ele fica estupefacto com a empatia, e ela continua sempre no mesmo registo "deve ser tramado sentir-se assim" (nem pergunta porquê, nem dá conselhos - limita-se a mostrar empatia). Acabam a conversar, e ele vai-se embora mais pacificado. No Evangelho também há exemplos interessantes. Refiro apenas um: quando a turba que quer apedrejar a mulher adúltera espera uma resposta de Jesus, este curva-se sobre si próprio e começa a escrever na areia.
Também há uma história deliciosa com o Ricardo Araújo Pereira: ao passar por dois homens furiosos, que se insultavam mutuamente "seu palhaço!" / "palhaço é você!", já prestes a passar a vias de facto, disse-lhes: "alto lá! o palhaço sou eu!"

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Enquanto escrevo isto, penso nos casos de jovens violadas durante as queimas das fitas, e imagino que o que se passou na casa de banho daquele McDonald's seria uma situação algo semelhante: todos (eles e elas) embriagados, alguns rapazes lembram-se de...


6 comentários:

Cristina Torrão disse...

Sim, as atitudes que revelam coragem civil normalmente não vêm no jornal, passam despercebidas, a não ser que deem para o torto, como esta.
São situações complicadas. Lembro-me que uma vez, estava eu há pouco tempo na Alemanha, houve um assalto a uma loja de um centro comercial de Hamburgo. Um cidadão que se apercebeu da fuga do ladrão tentou impedi-la, levou um tiro e morreu. A polícia veio então publicamente pedir às pessoas que não se armassem em heróis, que deixassem essas coisas nas mãos da polícia, ou seja, chamá-la é já suficiente. Por outro lado, a sociedade é frequentemente acusada de falta de coragem para intervir...

O princípio do diálogo não-violento, mostrando empatia pelo prevaricador, é uma alternativa interessante. O diálogo não-violento pode, de resto, aplicar-se em várias situações da vida. Mas resultará sempre tão bem, mesmo com alguém que esteja armado?

Helena Araújo disse...

Pois é, há muitos motivos para esperar pela polícia. Eu não me arriscaria a enfrentar um ladrão armado para evitar que ele fugisse. Só me arriscaria para evitar um mal directo a uma pessoa. E mesmo assim...
No caso da mulher que ia ser violada, a empatia foi a única arma que ela tinha. Ou funcionava isso, ou estava perdida.

Cristina Torrão disse...

Pode dar-se o caso de não sabermos/notarmos que o agressor/ladrão está armado. Já não me lembro bem, mas penso que foi o que aconteceu no caso que citei.

Helena Araújo disse...

No caso de um ladrão em fuga, parece-me que o conselho da polícia é razoável. Não vale a pena pôr a nossa vida em risco para salvar bens materiais.
Outra coisa é tentar salvar uma pessoa que está a ser atacada.
Uma vez um irmão meu foi assaltado num comboio cheio de gente. Mostraram-lhe uma navalha, exigiram o dinheiro. Ele deu tudo o que tinha, o comboio parou, o assaltante fugiu. Ninguém se mexeu.
É verdade que perdeu o dinheiro, mas que podia ter acontecido se alguém tivesse tentado impedir aquele assalto?

Cristina Torrão disse...

Pois, se ele tinha uma navalha, podia ser mesmo perigoso.

Nem de propósito, Helena: hoje ouvi na rádio (Delta Radio, uma estação de Kiel) que um cliente de um supermercado, em Hannover, morreu ontem à noite, na sequência de um assalto ao estabelecimento. Ele terá tentado intervir e levou um tiro. Tinha 21 anos! O ladrão em fuga ainda atirou contra outro homem, que ficou gravemente ferido. A notícia que ouvi não esclarecia que tipo de intervenção terá havido por parte da vítima. Mas eu não posso deixar de me perguntar se o caso recente da Tugce e toda esta onda que exige mais coragem cívica, não terá influenciado o jovem a agir. Não sou contra a coragem cívica, claro, mas nunca sabemos do que um desconhecido violento é capaz, vendo-se aflito. E o facto de não nos apercebermos de uma arma não quer dizer que ele não a tenha.

Helena Araújo disse...

Também me falaram disso, vem na Stern. E eu, ao ler, lembrei-me logo desta nossa conversa. Lá está: ajudar pessoas é uma coisa, tenter deter um assaltante é outra.
Parece-me que tens toda a razão: este apelo à coragem cívica pode levar as pessoas a agir e a pôr-se em risco em situações nas quais não seria necessário. E depois, o tema do meu post: é fundamental aprendermos mais sobre maneiras de ajudar que não piorem a situação.