25 agosto 2014

nós cá dentro do cinemagosto (3)



Atravesso a praça Rosa Luxemburgo, vou buscar pastéis de bacalhau e croquetes ao restaurante Lata. Começa a chover, pingos grossos e frios que me atravessam a saia e gelam a pele. Canto para aquecer. A nossa mostra de cinema português anda agora pelos temas "Nós também aqui - a Ditadura" e "Nós por lá - a Guerra Colonial", o nome da praça exige: escolho Campanades a Morts, sigo pela rua fora a cantar de cor e do peito, encoberta pela chuva: La misèria esdevingué poeta /  i escrigué en els camps / en forma de trinxeres, / i els homes anaren cap a elles. / Cadascú fou un mot / del victoriós poema.




O Cinemagosto está a chegar ao fim. Chove, carrego um tabuleiro enorme de pastéis de nata, penso nos voluntários do Cinemagosto a vender bolos de mel da Madeira feitos fiel criado Jau do cinema português, atravesso a praça Rosa Luxemburgo, canto Abril 74 (que cantaria a menina das tranças pretas quando atravessava Lisboa com os seus raminhos de violetas?), e penso que vou ter saudades desta semana.


No foyer, enquanto o público não vem, sentamo-nos à conversa. Desta vez, falamos sobre palavras alemãs intraduzíveis - "Rücksicht" (o comportamento que tem em conta os sentimentos, as necessidades, os interesses e os contextos das outras pessoas) e "Zuverlässigkeit" (diz-se das pessoas em quem se pode confiar, por cumprirem aquilo que se espera delas). Palavras-chave da sociedade alemã. Será que uma sociedade mostra a sua diferença nas palavras intraduzíveis que usa? Quais são as palavras intraduzíveis de Portugal? Saudade, é sabido. E talvez "fuodassecaralho"? Desatamos a rir.

Dentro da sala, a Anabela Moutinho - a alma mater desta mostra - apresenta o filme, controla a qualidade da projecção, conduz o debate. O Hannes Reiss traduz. A Teresa Prata filma, e andamos todos muito curiosos para conhecer o resultado final: o nosso Cinemagosto de Prata.




As portas da sala abrem-se, corremos para os nossos postos. As pessoas demoram-se na sala, e saem com ar contente. "Gostei de todos os filmes que vi!", diz uma. "Continuem!", pedem muitos. Encomendam filmes para os anos seguintes. A Anabela Moutinho ouve e responde que bem gostaria, mas certos filmes implicam custos bem mais altos que os fundos que os fiéis criados Jau conseguem arranjar. Não é fácil custear a cultura com bolos de mel.

De serviço no bar estão dois professores universitários, na mesa dos pastéis de bacalhau estão os doutorandos e os doutorados. Os meus filhos ajudam no que é preciso, não têm qualificações académicas suficientes para terem direito a pelouro próprio.



Encontro um velho amigo que não via há anos, e faço um intervalinho na azáfama para parar na alegria. Ele fica impressionado com o tamanho do Matthias e da Christina, eu pergunto pelo filho dele, que ainda ontem andava a aprender a dizer "bola". Já sabe dizer "bolas!", ou algo assim.
   



É o último dia, e apesar do adiantado da hora as pessoas deixam-se ficar pelos vinhos alentejanos e os pratos de presunto, pelas conversas no foyer. Está-se bem no nosso Cinemagosto.
Para o ano há mais.


(Com uma vénia ao fotógrafo Miljenko Perkic, autor destas fotos)


6 comentários:

Carla R. disse...

Valeu tanto a pena este Cinemagosto. Que post tão digno de palavras intraduziveis e inventadas de propósito !
Beijinhos

Carla R. disse...

Valeu tanto a pena este Cinemagosto. Que post tão digno de palavras intraduziveis e inventadas de propósito !
Beijinhos

jj.amarante disse...

Fez-me lembrar uma piadinha dos brasileiros: este ano os alemães tiveram sorte, o Verão calhou a um Domingo!

Gi disse...

Gosto muito das tuas reportagens, Helena. É como se lá estivesse.

Helena Araújo disse...

Carla, valeu muito a pena, sim.

jj.amarante, pelo que tenho ouvido, até parece que o verão em Portugal está a sair como a anedota sobre os alemães...
(este ano alegro-me com cada gota de chuva: temos relva fresca no jardim!)

Gi, obrigada. :)

jj.amarante disse...

Estamos cada vez mais germânicos nas intenções alegadas pelo governo. Na prática, nem por isso. No outro dia a temperatura em Estocolmo estava mais alta que em Lisboa, mas são excepções. O conceito de Verão é uma abstracção, este tem sido fresco. Em compensação o país não está a arder, é como a sua relva que estará a ficar viçosa. A minha cica também vai boa.