14 agosto 2013

emigrei, e agora tenho de aturar isto


Chega Agosto, é tiro e queda: começa a chacota contra os emigrantes portugueses, os termos depreciativos, as histórias "e daquela vez que a mãe estava a dizer Marie, viens ici, Marie, viens ici, e como a miúda fazia de conta que não ouvia ela desatou a berrar Ai minha esta minha aquela se não vens já para aqui vais ver o que te faço aos cornos, lembram-se?" e todos hahaha e hehehe e hihihi.
Na minha terra a gente ri-se muito.

Este verão ouvi outra vez o termo "avec". Pensava que tinha passado à história, mas não. Ainda anda por aí à solta. "Os avecs". Os abéques.
E já não posso ouvir as conversas sobre pessoas que "vêm para cá a falar estrangeiro para se armarem".
Primeiro: quem nunca comprou um software que "suporte" a impressora, quem nunca fez downloads em vez de baixar e quem digitaliza em vez de scanear, pois que forwarde a primeira pedra. Tal como quem ficou em casa e aprendeu palavras novas quando uma nova realidade entrou no país, as pessoas que saíram de Portugal encontraram outras realidades e outras palavras. Eu, por exemplo, se fizesse uma casa em Portugal, tentava fazê-la tipo "Haus": bem isolada, sem paredes húmidas no inverno, sem fungos nas paredes interiores. Percebo inteiramente os emigrantes dos anos sessenta que faziam "maisons" com "fenêtres". Veja-se (por exemplo) em Sobredo, na Peneda, o que eram as "casas" e as "janelas" das quais aquela gente fugiu quando saltou para França.
Segundo: quem vive décadas no estrangeiro acaba por se habituar a falar noutra língua, e tem dificuldade em regressar à língua materna. Mais ainda: tem muita dificuldade em encontrar as palavras certas, em fugir aos falsos cognatos, etc.
Terceiro: quem tem filhos e os educa no estrangeiro pode muito bem habituar-se a falar-lhes na língua na qual eles se sentem mais confortáveis e seguros. No meu caso pessoal, tive de tomar essa decisão quando a minha filha tinha quatro anos: responder em português, sabendo que ela não ia entender a resposta, ou responder em alemão, para lhe satisfazer a curiosidade? Criticaram-me muito na altura, que assim ela não ficava bilingue e tal, mas decidi que obter uma resposta é mais importante que ser bilingue.
Quando vivemos nos EUA, o Matthias recusou-se a falar português - nem sequer o queria entender. Dei comigo a falar inglês com os meus filhos. (Eu, inglês! Com sotaque do Porto. Desta podem rir à vontade - até a mim dá vontade de rir.)
Cada cultura tem uma maneira diferente de estar com as crianças, e é mais fácil manter-se nesse universo linguístico do que traduzir tudo para a nossa língua materna. E se acham que é fácil e natural traduzir de uma língua para outra, expliquem-me como é que aconteceu de em Portugal os softwares suportarem os hardwares. 
Em todo o caso: parece-me normalíssimo que alguém grite "Marie, viens ici" e depois, num momento de fúria, regresse ao seu próprio universo cultural e desate aos palavrões.
Também é natural que se fale com os filhos na língua do país no qual eles estão a crescer, e com o companheiro na língua materna comum.
Finalmente, e se querem saber: eu falava muito alemão com os meus filhos, mas ralhava-lhes em português. É que eles gostavam de ganhar alguma margem de manobra corrigindo-me a gramática alemã, e eu era o que mais faltava se fosse abrir mão do respeitinho. Eles podiam não perceber todo o texto, mas iam-se orientando pela música.

De modo que o Pedro Ribeiro, que escreveu um post - entretanto famosíssimo - com o título "emigrei e agora tenho este fascista a olhar para mim", só falou de metade dos azares dos emigrantes: além de não se sentirem em casa na terra para onde emigraram, têm na sua própria terra quem lhes faça sentir que essa também não é a sua casa.
- Ah, mas não é toda a gente que os trata assim.
- Pois não. Nem na Áustria são todos fascistas.

13 comentários:

jj.amarante disse...

O pessoal pensa pouco e tem dificuldade em aceitar que as palavras portuguesas não venham tão depressa como as do país para onde emigraram. Mesmo assim gostaria de dizer que I like beaucoup de banana because n'a pas de caroço.

Annie disse...


Sou portuguesa, mas nasci na Alemanha. Por razões familiares decidi regressar ou seja melhor "emigrar" para Portugal há cerca de 6 anos e bem difícil foi a adaptação. Ainda hoje não me livrei do sotaque nem do português que os meus pais ensinaram-me.

Tentei falar só em alemão com o meu filho, mas chegou a uma altura que também tive de optar falar em português pelas mesmas razões que apontaste.

"Du sprichst mir also voll aus der Seele"...

Helena Araújo disse...

Annie,
tiro-te as palavras da boca?
;-)
(a expressão alemã é bem mais bonita, diga-se de passagem)

jj. amarante,
será que pensamos pouco, ou que não temos energia para esse esforço suplementar?

angela disse...

Olá, estou bem contente com o fim das férias do blog (sou egoista:)

Sou expatriada em Angola e já o fui em Itália e no Brasil.
A mim o que me chateia são os juizos de valor generalistas. Detesto que julguem as minhas atitudes de acordo com um grupo em que supostamente me insiro. Detesto com todas as forças todas as generalizações(os portugueses em Angola são assim e assado;os italianos são assim e assado; os brasileiros são assim e assado;e então quando é vindo de quem nunca conheceu/viveu nenhum dos países visados...arghhh)

Cada um é como qual...Aquela coisa de eu e as minhas cicunstancias...


E claro que há coisas que se "entranham" e é dificil policiar-nos. Há dias, o meu marido dizia a um dos nossos convidados angolanos se queria levar uns doces da sobremesa. Ele disse: vou preparar um marmitex. Claro que foi olhado com estranheza. Um "marmitex" é embrulhar comida para levar para casa, isto no Brasil. Enfim, numa mesma conversa entre portugueses e angolanos surge um termo brasileiro...tudo na mesma língua, supostamente :)

Helena Araújo disse...

Ângela,
:) por causa desse egoísmo.

Ultimamente dou comigo irritada ao ler literatura de viagem. Como é possível aqueles escritores fazerem tantos juízos de valor sobre os povos que visitam?

Gi disse...

Helena, quando eu era "jovem e inconciente" também me ria dos erros dos emigrantes a falar português; depois entendi as causas e hoje fazem-me ternura.

Na verdade, também me faltam palavras para dizer exactamente o que quero.

Helena Araújo disse...

Pois é, estamos todos cada vez mais iguais - felizmente!

jj.amarante disse...

Helena, voltei a pensar no assunto e venho aqui desculpar um pouco essa intolerância com as dificuldades dos emigrantes com a sua língua natal após os longos períodos de ausência.

Eu achava que os emigrantes se armavam um pouco a falar a língua estrangeira, mas achava natural uma certa vaidade na aquisição dessa nova competência, como dizem agora os da gestão.

Há uns 20 e poucos anos, numa viagem a França, uma empregada duma loja que nos ouviu falar português (acho que os emigrantes teriam sido os pais) chamou a nossa atenção para esse embaraço de por um lado ter dificuldade em expressar-se em português e por outro as pessoas da terra em Portugal acharem que ela se estava a "armar". Aceitei a explicação, não tive propriamente uma epifania, mas o que é facto é que passados mais de 20 anos ainda me lembro dessa conversa da lojista e outra pessoa da minha família também, não sou o único.

Agora conjecturo que, para quem nunca saiu da sua terra e esteve sempre rodeado de falantes da sua língua nativa, não é nada trivial aperceber-se de que uma competência tão básica como expressar-se na sua língua nativa é uma competência que, como tantas outras, precisa de ser exercitada senão definha.

E isso perturba-me e faz-me pensar no que é a identidade e no choque que tive quando comecei a ver cadernos manuscritos por mim com textos que não reconhecia como meus.

Concluindo, parece-me que encontrei alguma justificação ou desculpa para a intolerância da eventual incompetência dos emigrantes na sua língua nativa.

jj.amarante disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Helena Araújo disse...

jj. amarante,
é verdade que a língua definha se não é exercitada. Mas pergunto se o saber expressar-se correctamente na sua língua materna deve ser uma prioridade para o emigrante,e se os que ficaram em casa lhes podem exigir isso e castigar o não cumprimento com chacota. Não é fácil ter de fazer pela vida num contexto cultural e linguístico diferente, e as forças não chegam para tudo.
Para lembrar que, no fundo, fazemos todos o mesmo, falei da terminologia da informática: se pessoas que não saem de Portugal, que estão mergulhadas no seu próprio universo cultural e na sua língua materna, se nem essas são capazes de falar correctamente português quando o tema é Informática, porque é que se exige dos emigrantes que sejam puristas da língua?
Falei da informática, podia falar do mundo financeiro: qualquer notícia sobre os produtos dos casinos bancários está cheio de palavras em inglês, ou más traduções para português.
A França tem uma lei de protecção da língua que obriga a encontrar palavras novas, francesas, em vez das estrangeiras (air bag, head phones, etc.). Gosto imenso de ver o que os linguistas franceses inventam na sua própria língua. Mas, lá está: se não houvesse uma lei a disciplinar as pessoas, a tendência natural seria incluir na língua materna palavras de outras línguas.
E não é de hoje. O português está cheio de galicismos. Se um distinto emigrante como o Eça de Queirós os usava, porque criticamos os pobres semi-analfabetos que nos anos sessenta saíram para França?
Penso que nessa chacota anda muito desprezo pelos "parolos", muita arrogância de casta.

jj.amarante disse...

Enviei 3 comentários, este é o quarto. O 3º é uma cópia espúria do 2º, agradecia que o apagasse. Alguma razão para os autores de comentários não poderem apagar os seus próprios textos? Nalguns blogues isso é possível.

Os seus exemplos ilustram o tema e são claros e a Helena tem razão ao dizer que os que ficaram em casa não devem "castigar o não cumprimento com chacota" e "nessa chacota anda muito desprezo pelos "parolos"" mas repito o meu argumento principal: "Agora conjecturo que, para quem nunca saiu da sua terra e esteve sempre rodeado de falantes da sua língua nativa, não é nada trivial aperceber-se de que uma competência tão básica como expressar-se na sua língua nativa é uma competência que, como tantas outras, precisa de ser exercitada senão definha."

Helena Araújo disse...

Olá jj. amarante,
parece-me que conseguiu resolver o problema do comentário.

Sobre isso de quem nunca saiu de casa não se dar conta de algo tão evidente, ocorre-me um episódio com o Wladimir Kaminer: o jornalista perguntou-se se ele inventa aquelas histórias, ou se o mundo dele é mesmo assim surreal. Ele ficou espantado: "o mundo está cheio de histórias surreais! vocês é que não vêem o que há de surreal no vosso mundo!"
Depois da entrevista fomos andando por Lisboa e pelo Alentejo, e ele fazia-me notar o que nós achamos normal: as ruas de Lisboa em que de um lado há casas em ruínas e do outro prédios de luxo; as autoestradas larguíssimas e vazias; etc.

Cristina Torrão disse...

Penso que há outro problema que aqui não foi mencionado. Muitas vezes, as pessoas que emigram têm poucas habilitações literárias, ou seja, têm dificuldades em se articularem na própria língua materna. Por isso, adotam, muito facilmente, expressões e palavras do país de acolhimento e usam-nas, muitas vezes, sem o notarem. Nunca mais me esqueço da mãe de um aluno (quando dava aulas às crianças portuguesas) que, a uma indicação minha, me perguntou, muito séria: "e não é preciso anmeldar"? Ela nem notou que tinha usado uma palavra alemã aportuguesada. E tenho a certeza que, se a dissesse em Portugal, não entenderia, num primeiro momento, porque é que os outros não a compreendiam. E os outros diriam que ela se estaria a armar.

Mas nada se compara ao charme de um miúdo de quatro anos, filho de portugueses a viver na Alemanha, que estendeu o copo vazio à mãe, com as palavras: "Marco quer trinken" ;)