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(...) Asceta e austero, o novo arcebispo ignora a pomposa residência episcopal da capital argentina para viver sozinho num pequeno apartamento perto da catedral e recusa carro com condutor em detrimento do autocarro e do metro.
Apesar da saúde frágil – extraíram-lhe parte do pulmão
direito aos 20 anos – leva uma vida ascética e levanta-se às 4h30 da
manhã para um dia de trabalho que começa sempre pela demorada leitura
de uma imprensa a quem não deu mais que uma entrevista. O novo papa é
conhecido por falar pouco mas ouvir muito.
Grande leitor, sobretudo de romances russos, com
Dostoievsky à cabeça, e o seu compatriota Borges, aprecia também ópera e
é um fervoroso adepto do San Lorenzo, um dos grandes clubes da capital
argentina, fundado em 1908 por um padre.
Dos seus anos de pároco em Buenos Aires e na montanha
guardou um forte sentido pastoral. Não desdenha confessar regularmente
na sua catedral e faz tudo para estar próximo dos seus padres, para
quem abriu uma linha telefónica direta. Não é raro vê-lo tomar uma
sandes ao pequeno-almoço num restaurante com um dos seus sacerdotes.
Em 2009 não hesitou ir morar num bairro de barracas, em
casa de um dos seus padres, então ameaçado de morte pelos traficantes
de droga.
Em 2001 foi criado cardeal por João Paulo II. No mesmo
ano a sua humildade impressionou os participantes no sínodo sobre o
papel do bispo, em que foi relator adjunto, em substituição do cardeal
Egan, arcebispo de Nova Iorque, chamado à cidade por causa dos
atentados de 11 de setembro.
Tendo feito da pobreza um dos seus combates, este
crítico aceso do neoliberalismo e da globalização tornou-se uma
autoridade moral incontestável na Argentina e no exterior. Ao ponto de
ser hoje, num país onde a oposição política é quase inexistente, a
única verdadeira força a opor-se ao regime de Kirchner, de que não
cessa de denunciar o autoritarismo.
Em 2005 a imprensa aliada de Kirchner acusou o
padre Bergoglio, provincial dos Jesuítas durante a ditadura, de ter
denunciado dois dos seus religiosos, que foram presos e torturados.
Outros testemunhos, pelo contrário, lembram as energias que despendeu
para conseguir a sua libertação.
Mensagem quaresmal do cardeal Jorge Mario Bergoglio (papa Francisco)
Buenos Aires, 13.2.2013, Quarta-feira de Cinzas
«Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes,
convertei-vos ao Senhor, vosso Deus,
porque Ele é clemente e compassivo,
paciente e rico em misericórdia» (Joel 2, 13)
convertei-vos ao Senhor, vosso Deus,
porque Ele é clemente e compassivo,
paciente e rico em misericórdia» (Joel 2, 13)
Pouco a pouco acostumámo-nos a ouvir e ver, através dos
meios de comunicação, a crónica negra da sociedade contemporânea,
apresentada quase com perverso regozijo, e também nos acostumámos a
tocá-la e a senti-la em torno de nós e na nossa própria carne.
O drama está na rua, no bairro, na nossa casa e, por
que não, no nosso coração. Convivemos com a violência que mata, que
destrói famílias, aviva guerras e conflitos em muitos países do mundo.
Convivemos com a inveja, o ódio, a calúnia, o mundanismo no nosso
coração.
O sofrimento de inocentes e pacíficos não deixa de nos
esbofetear; o desprezo pelos direitos das pessoas e dos povos frágeis
não nos são tão distantes; o império do dinheiro com os seus efeitos
demoníacos como a droga, a corrupção, o tráfico humano - incluindo
crianças – a par da miséria material e moral são moeda corrente.
A destruição do trabalho digno, a emigrações dolorosas
e a falta de futuro unem-se também a esta sinfonia. Os nossos erros e
pecados como Igreja também não ficam fora deste panorama.
Os egoísmos mais pessoais justificados, e não por causa
disso menores, a falta de valores éticos dentro de uma sociedade que
faz metástases nas famílias, na convivência dos bairros, vilas e
cidades, falam-nos da nossa limitação, da nossa debilidade, e da nossa
incapacidade de transformar esta lista inumerável de realidades
destrutivas.
A armadilha da impotência leva-nos a pensar: Será que
faz sentido tentar mudar tudo isto? Podemos fazer algo diante desta
situação? Vale a pena tentá-lo se o mundo continua a sua dança
carnavalesca disfarçando tudo por um tempo? No entanto, quando a
máscara cai, aparece a verdade e, embora para muitos soe anacrónico
dizê-lo, reaparece o pecado, que fere a nossa carne com toda a sua
força destrutiva, desfigurando os destinos do mundo e da história.
A Quaresma apresenta-se-nos como grito de verdade e de esperança
certa que nos responde que sim, que é possível não nos maquilharmos e
esboçarmos sorrisos de plástico como se nada se passasse.
Sim, é possível que tudo seja novo e diferente porque
Deus continua a ser «rico em bondade e misericórdia, sempre disposto a
perdoar», e encoraja-nos a começar uma e outra vez.
Hoje, novamente, somos convidados a empreender um
caminho pascal até à Vida, caminho que inclui a cruz e a renúncia; que
será incómodo mas não estéril. Somos convidados a reconhecer que algo
não está bem em nós mesmos, na sociedade ou na Igreja, a mudar, a fazer
uma viragem, a convertermo-nos.
Neste dia, são fortes e desafiadoras as palavras do
profeta Joel: «Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes,
convertei-vos ao Senhor, vosso Deus». São um convite a todo o povo,
ninguém está excluído.
Rasguem o coração e não as roupas de uma penitência artificial sem garantias de futuro.
Rasguem o coração e não as roupas de um jejum formal e de cumprimento que nos continua a manter satisfeitos.
Rasguem o coração e não as roupas de uma oração
superficial e egoísta que não chega às entranhas da própria vida para a
deixar tocar por Deus.
Rasguem os corações para dizer com o salmista :
«pecámos». «A ferida da alma é o pecado: Oh pobre ferido, reconhece o
teu Médico! Mostra-lhe as chagas das tuas culpas. E uma vez que ele não
são ocultos os nossos pensamentos, faz-lhe sentir o gemido do teu
coração. Leva-o à compaixão com as tuas lágrimas, com a tua
insistência, importuna-o! Que ouça os teus suspiros, que a tua dor
chegue até Ele, de modo que, no fim, possa dizer-te: “O Senhor perdoou o
teu pecado”»" (S. Gregório Magno).
Esta é a realidade da nossa condição humana. Esta é a
verdade que pode se aproximarmo-nos da autêntica reconciliação… com Deus
e com os homens. Não se trata de desacreditar a autoestima mas de
penetrar no mais fundo do nosso coração e cuidar do mistério do
sofrimento e da dor que nos liga desde há séculos, milhares de anos...
desde sempre.
Rasguem os corações para que por essa fenda possamos olharmo-nos de verdade.
Rasguem os corações, abram os vossos corações, porque
só num coração rasgado e aberto pode entrar o amor misericordioso do Pai
que nos ama e nos cura.
Rasguem os corações diz o profeta, e Paulo pede-nos
quase de joelhos "deixai-vos reconciliar com Deus". Mudar o modo de
vida é o sinal e fruto deste coração reconciliado por um amor que nos
ultrapassa.
Este é o convite, frente a tantas feridas que nos
magoam e que nos podem levar à tentação de endurecermos: Rasgai os
corações para experimentar na oração silenciosa e serena a suavidade da
ternura de Deus.
Rasguem os corações para sentir o eco de tantas vidas rasgadas e que a indiferença não nos deixe inertes.
Rasguem os corações para poder amar com o amor com que
somos amados, consolar com o consolo que somos consolados e partilhar o
que recebemos.
Este tempo litúrgico que inicia hoje a Igreja não é só
para nós mas também para a transformação da nossa família, da nossa
comunidade, da nossa Igreja, da nossa pátria, do mundo inteiro.
São 40 dias para que nos convertamos à santidade mesma
de Deus; nos convertamos em colaboradores que recebemos a graça e a
possibilidade de reconstruir a vida humana para que todo o homem
experimente a salvação que Cristo nos ganhou com sua a morte e
ressurreição.
Juntamente com a oração e a penitência, como sinal da
nossa fé na força da Páscoa que tudo transforma, também nos dispomos a
começar como nos outros anos o nosso "Gesto quaresmal solidário”.
Como Igreja em Buenos Aires que marcha rumo à Páscoa e
que crê que o Reino de Deus é possível necessitamos que, dos nossos
corações rasgados pelo desejo de conversão e pelo amor, brote a graça e
o gesto eficaz que alivie a dor de tantos irmãos que caminham ao nosso
lado.
«Nenhum ato de virtude pode ser grande se dele não
resulta proveito para os outros… Assim pois, por mais que passes o dia
em jejuns, por mais que durmas sobre o chão duro, e comas cinza, e
suspires continuamente, se não fazes bem a outros, não fazes nada
grande». (São João Crisóstomo)
Este ano da fé que percorremos é também a oportunidade
que Deus nos dá para crescer e amadurecer no encontro com o Senhor que
se faz visível no rosto sofredor de tantas crianças sem futuro, nas
mãos trementes dos idosos esquecidos e nos joelhos vacilantes de tantas
famílias que continuam a dar o peito à vida sem encontrar ninguém que
as sustenha.
Desejo-vos uma santa Quaresma, penitencial e fecunda
Quaresma e, por favor, peço-vos que rezem por mim. Que Jesus vos
abençoe e a Virgem Santa vos proteja.
4 comentários:
Para além da questão da denúncia, "estará" implicado, segundo alguma imprensa, no roubo de bebés durante a ditadura e de ocultar casos de pedofilia, mais recentemente (pelo que fui lendo por aí)
De qualquer das formas, grande mensagem quaresmal.
Há já muita esperança em redor deste Papa. Esperemos pois que sim, que ele seja aquilo de que o Mundo de hoje mais precisa: um Homem bom.
Pedro,
também já ouvi "dizer umas coisas". E depois, leio contraditórios. Sabemos todos como é fácil conspurcar a imagem de alguém. Antes de acreditar no que dizem, vou ver muito bem de onde é que vêm os rumores, que base têm, etc.
A. Castanho,
a minha primeira impressão foi muito boa. Pareceu-me um homem bondoso e humilde. Agora vamos ver.
Não está implicado no roubo de bébés. O que se passou foi que, já depois da ditadura ter acabado, declarou que só em 85 é que tinha tido conhecimento da existência desses roubos. Isto veio a provar-se ser uma mentira, o que é bastante grave, mas não significa que ele robou bébé algum.
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