02 outubro 2012

aquilo a que temos direito (3)

Um post do blogue Dias de Telha:



CONTRIBUTO PARA UMA DISCUSSÃO MAIS RACIONAL

Ontem foi um dia muito difícil para mim. Questionei a minha racionalidade, a minha moral e a minha ética. Perguntei-me se teria passado os últimos 20 anos a achar-me de um lado do espectro quando, afinal, estaria noutro. Demorei a pôr as ideias no sítio e ainda não cheguei exactamente lá. Mas o caminho faz-se passo a passo e é preciso ir pensando nas coisas.
Quando se discute, é bom ter os dados todos. Saber, por exemplo, o preço daquilo que se está a ponderar cortar. Sabem quanto custa 1 injecção daqueles medicamentos biológicos de que se fala e que os doentes tomam a cada 2, 3 ou 4 semanas? Uma só injecção custa milhares de euros. Mesmo. Um medicamento que se dá num linfoma (não me lembro agora qual e desculpem-me mas não me apetece ir ver) custa 5.000€ por injecção. Há outros mais caros, outros mais baratos.
O nosso sistema de saúde baseia os seus princípios éticos numa lógica de justiça distributiva – com tudo o que isso tem de bom (os mesmos cuidados de saúde e tendencialmente gratuitos para todos) e de mau (em Portugal não usamos os fármacos topo de gama para a quimioterapia, por exemplo, porque são demasiado caros e não conseguiríamos oferecê-los a toda a gente). O conselho de ética foi criado precisamente para assegurar que a tal da justiça distributiva é mantida.
Eu, honestamente, não sei como contornar esta situação. Não cortar? Ok. Mas se o dinheiro não cresce, então não cortar aqui vai implicar cortes noutros sítios – que se calhar até vão prejudicar mais pessoas, com igual gravidade. Cortar? Também me parece mal, porque, lá está, todos deveríamos ter o direito a viver o mais possível com a maior qualidade de vida possível.
Mas se chegamos a uma situação limite, em que ou cortamos 10 ou somos obrigados a cortar 100, então não será preferível cortar esses 10? Não será preferível pegar nos 10.000€ que aquele doente ia gastar no último mês da sua vida e usá-lo de uma forma que salve mais vidas? Se calhar não, porque as vidas não se podem comparar assim, como se 100 valessem mais do que 10. Mas na gestão têm de se contar assim, porque o dinheiro, de facto, não cresce.
Importa clarificar algumas outras coisas, também:
  1. não vai haver gente com hipóteses de cura a ficar sem tratamento. Vai é continuar a fazer-se como até aqui (e o bastonário actual vir criticar é de uma grande hipocrisia, porque já se faz só que não se diz que se faz): não há o topo de gama dos fármacos de quimioterapia, porque só poderíamos dar tratamento a uma porção dos doentes. Há uns menos melhores mas que nos permitem tratar 100%. E todos os dias há gestores de hospitais a proibir o uso de certos fármacos porque são muito caros. Era preferível continuar a fazer-se às escondidas? Pelo menos agora está claro que se escolhem os mais baratos dos melhores (para usar as palavras do senhor). Até aqui fazia-se isso e não se dizia nada.
  2. a quem se vai cortar tratamentos (não sei critérios, não sei quem decide, não sei nada; aliás, acho que ninguém sabe bem, ainda) é nos casos terminais. Atenção: vão cortar-se tratamentos CURATIVOS e não PALIATIVOS, como li muita gente confundir pela internet fora. Nos curativos, vão escolher-se fármacos mais baratos – que, repito, já é prática comum, só que o público não sabe.
  3. não é uma questão de merecer ou não merecer. A ser bem feito (e, lá está, isto é o que ainda não se sabe, até porque a comissão de ética não tem poder de decisão sobre isto, agora é o ministério que resolve), vai ser como o que já acontece agora. Agora também já se param terapêuticas ou nem se iniciam, se se concluir que a) não vão prolongar a vida do doente ou b) vão prolongá-la mas sem qualidade de vida.
Eu não acho mal que estas coisas, que já se fazem, se passem a fazer às claras. Porque acho importante percebermos isto. Eu confesso que fiquei muito chocada quando me disseram, no primeiro ano de medicina, que cá não se usavam os melhores quimioterápicos. Como não?! Mas se pararmos um bocadinho, percebemos: como podemos usar os melhores fármacos, se assim só tratávamos parte dos doentes?
Tudo isto é muito difícil, de pensar e de discutir. E eu não acredito que o presidente da comissão de ética tenha dito o que disse de ânimo leve. Não consigo acreditar. Nem que a comissão de ética (que decidiu com unanimidade) o tenha feito também de ânimo leve. Mas acho que às vezes não há grande escolha, pois não? Numa metáfora feia, mas muito apropriada: às vezes temos de amputar o pé para não perdermos a perna toda. É duro, é feio, mas é a realidade.
E sim, isto é horrível. E o senhor se calhar não escolheu as melhores palavras. E idealmente era muito melhor se pudessemos ter todos os melhores medicamentos e as melhores condições. Mas parece que não temos dinheiro para isso. Nem os países ricos têm dinheiro para isso.
E sim, devíamos cortar noutros sítios e não aqui, mas se não tivessemos mais onde cortar e esta questão se pusesse estávamos aqui outra vez.
Podemos entrar por outro lado e questionar por que razão são os tratamentos e os medicamentos tão caros. E esse é um caminho ainda mais complicado. Tomemos, por exemplo, os tais biológicos referidos acima.
Os biológicos custam fortunas porque são anticorpos sintéticos e ainda são de produção muito cara. Mas também custam fortunas porque as farmacêuticas que os desenvolveram têm a patente dos fármacos. Ora, isto resolvia-se facilmente se mudássemos a política de patentes e impedíssemos a “patente exclusiva” ou lá o que é (não faço ideia se se chama assim, mas vocês percebem). Mas se tirássemos às farmacêuticas o incentivo das patentes (que é o que lhes permite ganhar MUITO dinheiro com os medicamentos que desenvolvem) estaríamos a tirar-lhes a única razão pela qual elas investem biliões de euros na investigação e desenvolvimento de novos medicamentos. As farmacêuticas passariam a viver dos lucros dos fármacos que já criaram e a investigação ficava só nas faculdades e institutos públicos – que não têm dinheiro nenhum, comparados com os gigantes da área. E a medicina parava no tempo.
Era bom que houvesse quem fizesse investigação pelo bem da humanidade, sem exigir nada em troca? Era incrível. Mas não me parece que vá acontecer.
 Há discussões impossíveis. E que se tornam ainda mais difíceis pela histeria colectiva que geram. Usar termos como “eutanásia dos pobres” ou eugenia é o equivalente a gritar fogo num estádio apinhado – começa tudo a gritar e a correr para a porta e já ninguém ouve o senhor lá ao fundo a dizer que não, foi só uma beata que pegou fogo a um caixote do lixo. Não ajuda à discussão, não permite a discussão.
Não queiram fazer preto ou branco de uma questão com tantos tons de cinzento. Não ajuda ninguém, não adianta nada. E já agora, vão ler o Público, que foi o único que, ontem e hoje, falou com calma e cuidado sobre esta questão, sem gritar fogo como os outros jornais fizeram.

11 comentários:

Ana V. disse...

Sophie's Choice..

Anónimo disse...

Não é a Sophie's Choice precisamente porque não é a Sophie a fazer a escolha - nem deve ser, que a escolha da Sophie nunca poderia ser racional e esta tem obrigatoriamente de o ser. Está precisamente aí a importância de que isto se discuta atempadamente.

Obrigada, Helena! Venha de lá o franchising :)

Helena Araújo disse...

diasdetelha:

:)))


Ana Vicente,
além do que a diasdetelha disse, é preciso ver que a escolha de Sofia era um acto de sadismo e abuso de poder.
Aqui, a escolha deve-se à falta de dinheiro para pagar tudo. É algo exterior a nós.
Podemos eventualmente ir buscar o dinheiro a outro lado, usar os recursos com mais eficiência, etc., mas em algum momento a questão da escassez de recursos será de novo colocada.

Rosário disse...

sim, sim e sim.
o que foi dito e que tanto chocou o país não é de facto novidade. já se pratica sob diversas formas e há bastante tempo (desde sempre?)
a questão, como eu a vejo, é um pouco como o que se passa cá em casa: antes de cortar nas compras da carne e do peixe vou cortar noutras coisas onde não sou tão exigente com a qualidade.
continua a parecer-me -a mim que tenho uma visão muito simplista da vida - que começamos sempre pelo fim; por exemplo com a história do tráfego automóvel: encheram-se as cidades de parquimetros em vez de apostar numa eficiente rede de transportes com respectivos passes.
voltando à saúde é preciso coragem e determinação politica. vontade politica, cor politica se quiserem. há sempre várias leituras da biblia certo?
a evoluçaõ não pode ser isto! dizer a alguém que existe solução para o seu problema mas não é viável?

Helena Araújo disse...

Ó Rosário, eu já ando a cortar na carne e no peixe, para comprar vegetais biológicos! :)

Acho que andamos a começar as coisas pelo fim, sim, mas baseio-me em argumentos diferentes dos seus. O que me preocupa são doentes que esperam dois meses por um tac urgente, e que têm de pedir a algum vizinho por caridade que os leve ao hospital, porque eles não podem caminhar até à paragem da camionete e da paragem de chegada até ao hospital, e o SNS não lhes paga o transporte. Isto acontece no nosso país. Mas nós andamos aqui a gemer como se fosse o fim do mundo porque o Governo pediu um parecer sobre três medicamentos de ponta (que nem sequer é líquido que sejam melhores que outros mais baratos) que no ano passado custaram uns 5% do total dos custos do SNS. E o parecer só clarificou aquilo que afinal já se faz, sem se falar sobre isso.

Rosário disse...

poupar no que quer que seja para comprar legumes biológicos é batota. eu referia-me a poupar de verdade. nem vou falar no que eu ando a poupar, pois há sempre alguém a poupar mais e há mais tempo...
eu acho que não andamos a gemer por tão pouco.
andei a ler alguns comentários em posts anteriores e concordo com a ideia "Um contabilista, como é o nosso Ministro da Saúde, com um parecer daqueles dado por uma Comissão de Ética é muito bem capaz de mandar abrir os fornos." Ou seja, acho tudo isto muito perigoso.

jj.amarante disse...

Reconhecendo a necessidade de encarar o facto de termos recursos finitos para a saúde, como já fiz em comentário anterior e reconhecendo também que é necessário dinheiro para as farmaceuticas investigarem, e considerando ainda que sendo elas corporações gigantes é de esperar que em termos absolutos os números dos lucros também sejam grandes, considerando portanto isto tudo, considero que os lucros das farmaceuticas precisam de um grande escrutínio público pois constituem um oligopólio. Não sei se a OMC estará à altura para fazer esse escrutínio. Haverá alguma organização que se dedique a isso?

Nan disse...

Sabe do que tenho medo? Que se comece por aqui e depois, devagarinho, se vá alargando. Num comentário (já não me lembro onde, palavra!) uma criatura repontava boçalmente que «se calhar queriam que fossem gastar milhares de euros a dar injecções para tratar um tipo qualquer que nem contribuiu em nada para o pib»... Entende o meu medo?

Helena Araújo disse...

Nan,
temos motivos para temer isso. Compreendo que, perante afirmações como "não é possível dar tudo a todos" as pessoas concluam "então isso quer dizer que só vão dar tudo a alguns, os do costume".
E esse comentário é assustador, porque mostra que essa pessoa só vê num ser humano a sua faceta de factor de produção.
Esperemos que o poder nunca caia nas mãos de quem pensa assim - há que permanecer atentos e críticos.
Por isso mesmo, esse medo é positivo: é ele que nos permite continuar alerta.

Helena Araújo disse...

Rosário,
retórica do género "abrir os fornos" é justamente o exagero que eu critico.
Compreendo a sua preocupação, partilhada por muitos amigos meus.
Mas andamos a discutir isto no vazio. Afinal, que medicamentos são esses? Para que servem?
Pela notícia do Público
http://www.publico.pt/Sociedade/ministerio-autorizado-a-cortar-em-tratamentos-mais-caros-para-cancro-1564780?p=1
não me parece nada que o governo português esteja com carta branca para "abrir os fornos". Leu a parte relativa à possibilidade de doentes estrangeiros virem a Portugal tratar-se? Tinha a sua ironia haver doentes alemães a virem a Portugal receber do SNS português aquilo que o alemão já não lhes dá...

Helena Araújo disse...

jj.amarante,
confesso que não sei.
Só sei um pequeno detalhe: ontem tivemos visitas, uma amiga que trabalha numa grande empresa farmacêutica alemã. Disse que o tempo das vacas gordas na indústria farmacêutica já acabou.
(espero que isto sejam boas notícias...)