25 agosto 2012

o passeio dos alegres (2)


Ontem aproveitei estar a chover um bocadinho para os enfiar na ilha dos museus.
Começámos pelo museu egípcio, porque era o que estava mais à mão (porque de facto qualquer um daqueles museus é bom para começar). E além disso, este museu ainda tem a Nefertiti. Ora, é de toda a conveniência não perder a oportunidade de ir ver a Nefertiti enquanto ela está em Berlim. Que isto de nascer na África é sempre um problema: uns, é a Europa que não os quer deixar entrar; outros, é o seu próprio país que não os quer deixar sair. Volta e meia, lá volta o Cairo à carga: a Nefertiti é nossa, devolvam-na à proveniência!
Portanto, entrámos na ilha dos museus justamente pela Nefertiti. Bela mulher. Está sozinha no meio de uma sala redonda da parte do edifício que sobreviveu razoavelmente à guerra. O arquitecto optou por deixar nas paredes todas as marcas da História, sem tentar esconder ou melhorar, o que acrescenta dignidade e mistério àquela mulher soberba.
Por algum motivo que ainda hei-de investigar, é proibido fotografar aquela escultura. Os guardas devem ter pressentido alguma coisa na nossa cara, porque não nos perdiam de vista por um único momento. Mesmo quando estávamos já na sala seguinte, e pensámos fazer uma fotografia do conjunto, com a estátua lindamente enquadrada pelo pórtico, um polícia pôs-se à entrada, tapando a vitrine com a sua cara de poucos amigos.
"Pouco amigos" foi o mote do dia: os guardas falavam connosco em alemão, e sem simpatias. Para nos desencostarmos das paredes, para não nos sentarmos nos degraus, para isto, para aquilo...
Percebo que seja desagradável dizer centenas de vezes por dia que as pessoas não se podem encostar ou sentar, mas seria possível fazê-lo em inglês e com bons modos?

Os museus são enormes, e o grupo é muito grande. Cansa imenso atravessar todas aquelas salas esperando sempre por alguém. Ora é um que está a ver algo com mais detalhe, ora é outro que está a fazer mais uma fotografia, ora são três que se sentaram num banco e estão com pouca vontade de se levantar. Pelo que combinámos que no Pergamon só víamos realmente os highlights - o altar, a porta do mercado de Mileto, a rua triunfal da Babilónia, e o chapéu de ouro que se mudou para lá por uns tempos. E antes disso comíamos uma sopinha no restaurante, para descansar um bocado. O restaurante do Pergamon é óptimo: tem comida mais ou menos árabe, a um preço aceitável. Achava eu, pelo menos. Quando eles viram que a sopa do dia era de beringelas, passou-lhes o cansaço e pediram para entrar imediatamente no museu. É muito bonito ver jovens assim sedentos de cultura.
Era para ver só os highlights - mas o problema de Berlim é que highlights há muitos, e sempre novos e mais. O chapéu de ouro que procurávamos, por exemplo, faz agora parte de uma exposição sobre os temas da arqueologia, que agrupava imensas raridades (ooops! lapalissade.). Gostei imenso da sala dos mapas: uma plaquinha de barro minúscula, que cabia na palma da minha mão e era um mapa do mundo - do mundo da Babilónia, entenda-se, com as cidades e os canais de água, e setas a toda a volta apontando direcções para outros mundos; um mapa do mundo visto por um árabe, feito de pernas para o ar, com uma Europa bastante torta (como é que com visões tão distorcidas pode haver entendimento entre as culturas?); e um extraordinário mapa das estradas do império romano, esticado e achatado para caber num rolo de vários metros de comprimento e uns 40 cm de altura. Quem pensa que a invenção dos mapas simplificados das redes de metro foi uma grande conquista do design, tinha de ver aquele império romano distendido, e pensar no esforço de abstracção que a realização de um mapa daqueles exige.
Saímos do Pergamon, fomos almoçar. O polícia que guarda a casa da Merkel disse-nos que havia um McDonald's na estação da Friedrichstrasse, e para lá fomos. Mostrei aos miúdos todas as possibilidades de fast food que aquela estação oferece, mas eles queriam McDonald's. Seja - quem já gramou dois museus, merece um bocadinho de comfort food...
Depois separámo-nos para ir para casa por caminhos diferentes, porque eu queria ainda tentar o milagre de um bilhete na filarmonia, e eles estavam demasiado cansados para mais esse desvio. Fui só com uma das miúdas, que quer ser cantora lírica. Parámos na Dussmann para ela ver partituras. Tinha as que ela queria, e muitas mais: metros e metros de estantes só com partituras para canto. Temos de voltar lá, que o Ali Babá também foi mais do que uma vez à sua caverna do tesouro.
Pouco depois um grupo partiu com o Joachim para o futebol, e eu fiquei em casa com as duas fantásticas  que quiseram ir ao concerto. Ia começar a fazer o jantar quando o telefone tocou. O Matthias tinha tido um acidente grave de bicicleta. Expliquei às miúdas como podiam ir para a Filarmonia, meti-me no carro, fui ter com ele, os dois miúdos envolvidos no acidente estavam vivos, ufff. Daí a pouco chegaram dois polícias, e foram óptimos: a primeira pergunta foi se estavam feridos. Depois de se assegurar que não havia problemas de maior, veio o sermão: "ainda bem que não aconteceu nada de mais grave, e que vocês escaparam disto só com o susto. Já tenho visto coisas bem piores. Os ciclistas em Berlim pensam que não há regras, fazem o que lhes apetece, e às vezes metem-se em sarilhos dos grandes. Na vossa idade, vocês já começam a entrar no mundo dos adultos, ou seja, isto vai ter consequências legais". Só me apetecia dar-lhe beijinhos. É que isto de ser mãe de um rapaz de quinze anos, que acha que já sabe tudo, é um ofício muito difícil. Depois de preencher a papelada, ele rematou ainda com um: "e de futuro, lembrem-se disto: mesmo que vos pareça coisa da pequeno-burguês, se o semáforo está vermelho, é para parar!"
Metemos a bicicleta no carro, fomos ter com o amigo do Matthias que estava há mais de uma hora à espera para irem ao futebol, resolveram ir para casa. Deixei-os na sala a ver um filme, saí para a Filarmonia, ainda na esperança de me arranjarem um bilhete à porta. Não arranjei bilhete, mas não perdi a noite: era o concerto de abertura da temporada, havia tapete vermelho, fotógrafos, jornalistas a escrever de pé num portátil pousado num banco alto (sim, agora percebi aquele extraordinário fenómeno de quando fui à abertura da Carmen nos Festspiele: eles escreveram directamente do tapete vermelho, enviavam as fotografias e o texto, e no fim da ópera (por volta das onze da noite) já nos estavam a oferecer o jornal do dia seguinte com a notícia sobre o espectáculo que tinha acabado naquele momento). As miúdas chegaram justamente na altura em que o Wowereit esperava o presidente da República. Ficámos a vê-los posar para a fotografia. O presidente está separado mas não divorciado, e vinha com a sua actual companheira, que não é a primeira-dama, é a Frau Schardt. No tapete vermelho da semana passada vi um ministro de mão dada com o seu marido, esta semana é uma presidente de mão dada com a sua não-esposa - quem diria que estas inovações vêm justamente da Alemanha, que tem ainda valores tão conservadores?

Voltei para casa, e vi o concerto na internet. Fiz o jantar. Os do futebol chegaram. As da Filarmonia telefonaram, e eu atendi preocupadíssima, a pensar que se teriam perdido, mas não: sabiam perfeitamente o caminho, mas queriam saber onde podiam ir comer um gelado àquela hora.

De madrugada choveu torrencialmente. Agora o céu abriu, luminoso e sem nuvens. Não é o tempo mais adequado para ir passear pelos bunkers subterrâneos da segunda guerra mundial, mas é o que vamos fazer daqui a bocadinho.






 (vamos a apostas: egípcio ou romano?)

















1 comentário:

Paulo disse...

Assim que vi a imagem da Nefertiti pensei que tinhas arriscado fotografá-la. Depois respirei de alívio.
Obrigado pela reportagem, apesar do susto em relação ao Matthias.