04 novembro 2011
os medos secretos dos alemães
(texto publicado na Berlinda, onde também está disponível em alemão)
De onde virá a famosa “deutsche Angst”, o medo alemão?
Para Gabriele Baring, terapeuta familiar e autora do livro “Os medos secretos dos alemães”, recentemente publicado, as causas têm de ser procuradas nos terríveis acontecimentos do século XX que, por não terem sido verbalizados nas famílias, deixaram profundas marcas nas pessoas.
Numa apresentação na livraria Dussmann, perante uma sala tão superlotada que algumas pessoas tiveram de ficar à porta, Gabriele Baring falou longamente do modo como o não-dito atravessa as famílias ao longo das gerações, e condiciona os actos das pessoas. Sustentou que é um fenómeno que atinge toda a sociedade alemã (“e os que dizem que não sofrem nada disso são os mais atingidos”), dando exemplos de como se manifesta até no topo da pirâmide política, e tem efeitos sobre o destino da nação.
“E os outros povos?” – é a primeira questão que, perante uma afirmação destas, ocorre ao ouvinte. Os russos também deviam sofrer da mesma Angst, ou não? Talvez a resposta resida no impedimento da verbalização: sendo certo que as duas guerras mundiais do século XX devastaram vários países europeus, e não apenas a Alemanha, este país impôs-se um silêncio sobre o seu próprio sofrimento que, combinado com sentimentos de culpa e de vergonha, criou um mal-estar profundo e geralmente ignorado, que se foi transmitindo de geração em geração. O silêncio, esse cancro: sobre a colaboração do pai ou do avô com o regime nazi, sobre as atrocidades da guerra (as sofridas, as infligidas a outros), sobre as violações em massa. A terapeuta afirma que é procurada por pessoas com uma enorme variedade de sintomas, e que, na grande maioria dos casos, se chega à conclusão que esses problemas radicam nos traumas que a guerra deixou. Curiosamente, os descendentes dos criminosos acusam sintomas semelhantes aos dos descendentes das vítimas.
A palestra prossegue para o campo dos políticos: quantas das suas decisões não se destinarão, no fundo, a homenagear um pai que desapareceu demasiado cedo, morto em combate? Focou com mais detalhe o caso de Karl-Theodor zu Guttenberg, nascido numa família cujo nome transporta pesadas obrigações, neto de resistentes, criado longe da mãe: os seus erros idiotas poderiam ser obra de um impulso inconsciente para se libertar dos grilhões do passado familiar.
Como curar esta Angst? Gabriele Baring propõe uma abordagem das constelações familiares. Servindo-se da teoria dos campos morfogenéticos de Rupert Sheldrake, vai buscar informações familiares transportadas nos genes ou nas células das pessoas. Explica, de modo simples, como funciona este trabalho com um grupo: uma pessoa escolhe, de entre aquele grupo, representantes para membros da sua própria família. Essas pessoas contam o que sentem (inclusivamente sintomas físicos), fazendo revelações surpreendentemente próximas da realidade dos familiares referidos, que o próprio sujeito central em muitos casos desconhecia. A verbalização e o confronto com alguns actores da história familiar, ainda que por interposta pessoa, permitem um reajustamento e uma libertação.
O moderador pede-lhe que leia nova passagem do livro, e ela escolhe uma passagem difícil: o abuso sexual de crianças dentro da família. Defende que só um acordo tácito da mãe, mesmo que não consciente, permite ao pai ou companheiro abusar da criança. Fala de casos terríveis, em que este “contrato familiar” passa da avó para a mãe, e desta para a filha. E que só a verbalização e o tratamento destes traumas permite quebrar o ciclo vicioso que atravessa as gerações.
“Nesse caso, teremos de alargar o banco dos tribunais, para que caibam todos os antepassados do réu?”, provoca o moderador. A autora sorri, e concorda: “Boa ideia!” Mas corrige logo a seguir, em tom sério: “Obviamente, cada pessoa responde pelos seus actos. O que não podemos é ignorar que somos muito menos livres do que pensamos.”
No público levantam-se algumas vozes de resistência:
- Mas que generalização disparatada! Está a insinuar que todos os alemães são doentes?
- Sim, todos os alemães precisam de se confrontar com as histórias silenciadas da sua família, é a resposta. E fala de um conhecido seu, um excelente profissional, que terá lido mais de cem livros sobre Hitler, mas não conseguiu ler o diário que o seu avô escreveu durante a guerra.
O moderador despede-se: prometeu à família que estaria em casa nessa noite, e – acrescenta, rindo - tem medo de perder o avião. O debate prossegue. O método da constelação familiar é muito elogiado. Pergunta-se: quantas das pessoas nesta sala conhecem a história da sua família? Nem metade dos presentes. Gabriele Baring insiste: é muito importante terem a coragem de se confrontar com essa história, vão ver que encontram pessoas muito simpáticas nas vossas raízes. Contudo, tenham cuidado com o terapeuta de constelação familiar, assegurem-se que é um bom profissional. Se não o puderem fazer comigo – remata, com um sorriso.
A sessão termina, mas algumas questões ficam em aberto. Será este um problema exclusivamente alemão? E a sociedade portuguesa? Que traumas da guerra colonial atravessarão as gerações? Que traumas terão deixado os surtos de emigração, as terríveis feridas que abriram nas famílias? A simples fuga em massa, em meados do século passado, dos campos para o litoral urbano?
***
Adenda - em conversa sobre isto, ofereceram-me um interessante artigo sobre os retornados e o não verbalizado: Os retornados estão a abrir o baú.
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8 comentários:
Bin gespannt...
Excelente texto, Helena. O livro parece ser muito interessante; espero que venha a ser traduzido para português -- ou, vá lá, para inglês ou francês.
A propósito da adenda. Há alguns anos, poucos, li o "Caderno de Memórias Coloniais", de Isabela Figueiredo, um livro muito interessante que vai no mesmo sentido, isto é, o confronto com o próprio passado. Neste momento, estou a ler "O Retorno", de Dulce Maria Cardoso, um livro belíssimo, mas com uma abordagem diferente: a adaptação à vida na metrópole de uma família de veio das colónias.
Obrigada, Carlos.
Não sei se compraria o livro. Parece-me que ela puxa a brasa ligeiramente à sua sardinha. Não é preciso fazer a apologia da terapia de constelação familiar como se não houvesse mais nada para curar as neuroses dos alemães - que com certeza não radicam apenas nas duas guerras.
Mas é com certeza uma ideia a agarrar: as coisas traumatizantes que acontecem numa família podem passar de geração em geração se não forem encaradas de frente.
Li O Retorno, e gostei imenso. O da Isabela Figueiredo ainda o hei-de comprar. Está no topo da minha lista.
Pela curiosidade que me suscitou, eu arriscaria comprá-lo -- enfim, dependeria do preço... :-)
No que concerne ao "Caderno de Memórias Coloniais", recomendo-o sem qualquer reserva; aliás, escrevi sobre ele aqui.
Li o seu post: muito bom!
Já antes estava decidida a comprá-lo. Acompanhei de longe o processo de nascimento do livro, alegrei-me quando saiu.
E tenho uma paixão secreta pelo "sr. Simões", o agente literário da Isabela. Sempre que ela escreve sobre ele, o meu coração dá um salto de alegria.
Obrigado! :-)
O sr. Simões é um personagem -- real ou imaginário, who cares!? -- engraçadíssimo. Contudo, tenho uma dúvida: será a boa ou a má consciência literária (e não só) da escritora? ;-)
ah, esperem lá! é para pôr links, hein?
vamos a isto:
http://sem-se-ver.blogspot.com/search/label/isabela%20figueiredo
(sim, até tenho etiqueta... :D
o post sobre o caderno é o 2º)
já ganhaste, sem-se-ver
- bela sequência de posts! Os teus, e os da Isabela.
(será que és a fã nº2 do sr. Simões?)
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