22 novembro 2011

num país perto de si

A Alemanha é neste momento um país em estado de choque, debatendo-se com o - segundo dizem - maior escândalo do pós-guerra. Muito resumidamente: há cerca de 10 anos, quando iam proibir a NPD, descobriram que havia demasiados agentes dos Serviços de Informação nas chefias desse partido, o que tornava impossível distinguir o que era NPD e o que era Estado. Um escândalo, uma vergonha, um fiasco brutal. O processo voltou ao ponto inicial, a NPD continuou sob observação. Simultaneamente, começou uma estranha série de assassínios de proprietários de restaurantes de Döner. A polícia tratou de investigar "em todas as direcções": falou-se logo em ajustes de contas entre máfias turcas, mas não se avançou muito na pista da violência de extrema-direita. Há dias descobriu-se que esses assassínios eram obra de um grupo de neonazis, tal como as bombas em prédios com muitos estrangeiros, o atentado num cemitério judaico e os assaltos violentos a bancos. O que transtorna a Alemanha é não entender como foi possível ter tantos agentes dos SI dentro da NPD e nenhum deles informar sobre aquilo a que o Spiegel já chamou a "Braune Armee Fraktion". A pergunta do momento é: "seremos cegos do olho direito?", e a pergunta que imediatamente se segue: "porque é que isto está a acontecer com tanta força no território da antiga RDA?"
Em Dezembro de 2007, quando morávamos ainda em Weimar, comecei a fazer uma lista sobre a presença dos neonazis na minha vida (incidentes que se tinham passado comigo ou com pessoas que eu conhecia). Pelo motivo habitual ("eu não dou vazão!") a lista ficou esquecida. Até esta semana, quando se soube que, bem perto de Weimar, neonazis tentaram fazer um atentado bombista numa casa onde moravam portugueses, e me dei conta que aquela sensação de insegurança era muito mais que justificada: há de facto uma rede de extrema-direita organizada e disposta a tudo, e o seu epicentro situa-se, ao que parece, muito perto da região onde eu vivi. 
Retomo essa lista, acrescento alguns incidentes mais recentes e outros lidos em jornais. 

I.
No verão de 2006, a directora do centro de refugiados de Weimar organizou um campo de férias para animar os miúdos. Mais difícil que arranjar o dinheiro, foi convencer as mães a largar os filhos durante uma semana. Na terra de ninguém que é o tempo de espera por uma decisão sobre o seu futuro, as pessoas acabam por se agarrar à única certeza do momento: os membros da família.
Foi uma semana óptima, numa casa no meio da floresta, com imensas caminhadas, visitas a museus infantis, jogos. Na viagem de regresso vinham felizes.
Até que um bando de rapazolas entrou no comboio, reparou naquele grupo de miúdos e começou a insultar ("kanake", "bananas castanhas"). Quando um deles resolveu abrir o saco de uma das crianças e espalhar o conteúdo, um dos alemães presentes naquela carruagem disse "agora chega!" e tirou-lhe o saco. Caíram-lhe todos em cima, levou uma tareia de ir parar ao hospital.
Por sorte o comboio parou na estação seguinte, onde a Polícia já estava à espera.
Os miúdos, esses, precisam agora de ter luz no quarto para adormecer, e não vão esquecer facilmente o terror daquele momento.

II.
Neuruppin, sábado de manhã. Uma cidade ao norte de Berlim, rodeada de floresta e lagos, linda, e uma manhã deslumbrante de sol. Pela rua principal passa um bando de neonazis. Serão uns dez, o som assustador das suas palavras de ordem enche a rua. Não percebo a letra, mas fico aterrorizada com a música. Eles que não saibam que sou estrangeira! Uma senhora de meia-idade passa de bicicleta, olha para mim como quem pede desculpa. "E não se pode fazer nada...", diz ela. Eles vão numa direcção, eu procuro outra. Passo por um café e vejo o seu dono: tem pele escura. Sorrio-lhe, enquanto penso: "é preciso muita coragem - ou então muito desespero - para teres aqui um café, homem!" - e procuro refúgio no meu hotel. 
III.
Em Weimar surgiu uma iniciativa de cidadãos para promover debates e exposições sobre o problema da extrema-direita. Passado algum tempo, corria na internet uma lista com o nome de todos os participantes, morada, número de telefone e outros dados pessoais. Uma lista do tipo "procura-se, vivo ou morto".

IV.
Depois do jantar, levo dois cientistas coreanos ao hotel deles. Atravessamos a cidade a pé, o passeio do costume: o parque sonhado por Goethe, o palácio com a sua ala construída por Goethe, a biblioteca Anna-Amalia organizada por Goethe, a escola de artes para o povo onde Goethe chegou a morar, o café-bar Piano, o hotel. Um dos coreanos quer levar-me de volta a casa, porque não gostou do ambiente no café e não acha bem que eu passe por lá sozinha àquela hora. Digo-lhe com um sorriso como quem pede desculpa que eu, com a minha cara de mulher, corro menos riscos na noite de Weimar que ele com os seus olhos amendoados. 

V.
Em frente aos edifícios de plattenbau onde estão alojados os refugiados residentes em Weimar, o director regional da Caritas explicou: deste lado são os blocos dos refugiados, e daquele lado são os blocos dos estudantes. "Os estudantes são gente tolerante...", comenta um dos presentes. "É mais o contrário: os refugiados são tolerantes", corrige o director.

VI.
Um professor de uma turma de secundário conta-me que basta ter um neonazi na sua sala para o ambiente ficar insuportável, e ser praticamente impossível dar as aulas. No jornal leio que um professor de História deu o III Reich em duas aulas, porque se sentia intimidado pelos alunos neonazis naquela turma. Num parlamento de um Estado da antiga Alemanha de Leste os deputados lamentam-se que perdem imenso tempo de plenário a explicar aos deputados da NPD o que está fundamentalmente errado nas suas exigências. Estes divertem-se imenso com as sessões: sabem muito bem que estão a torpedear a Democracia no seu próprio coração.

VII.
Durante o mundial de futebol na Alemanha as praças encheram-se de ecrãs para ver os jogos. Também a praça em frente ao teatro de Weimar (o de Goethe, o da estreia do Lohengrin, o da República de Weimar) está cheia de gente alegre. Passam neonazis, avançam a direito pelo meio das pessoas, no rosto e na postura corporal uma expressão de arrogância e agressividade latente - dois ou três bastam para uma sombra cair sobre toda a praça. Penso nos dementors do Harry Potter, esses que ao passar pelas pessoas lhes sorvem a alegria.

VIII. 
Estou a almoçar num pequeno restaurante vietnamita, com o meu filho de seis anos. Um rapaz entra com ar decidido, dirige-se ao dono, um homem já de certa idade, e dá-lhe uma ordem: "troca-me esta nota por moedas!"
Quero dizer-lhe que não é assim que se fala com pessoas mais velhas, mas encho-me de medo: e se ele vê pelo meu sotaque que não sou alemã, e se ele me dá uma tareia? 

IX.
Antes de atravessar num semáforo vermelho, olho em volta: para ver se vêm carros, e se há neonazis por perto. Primeira estratégia de sobrevivência: não dar nas vistas.

X.
A avó de uma amiga minha contou-me que, quando era pequena, os pais costumavam comprar nas lojas dos judeus. Que eram gente séria, vendiam produtos de boa qualidade e nunca enganavam os clientes. Depois começou a falar da nova sinagoga em Munique, e que é demasiado grande, e que bem podiam ter feito uma coisa mais discreta...
- Mas os cristãos também fazem igrejas enormes..., disse eu.
- Pois então, os judeus que vão fazer sinagogas grandes para a terra deles...
- A terra deles?! Os judeus chegaram à Europa antes dos cristãos - aliás, o cristianismo entrou na Europa pelas comunidades judaicas.

XI.
No Ku'damm passam duzentos neonazis a gritar palavras de ordem. Vozes como um trovão.
Vejo-os da porta da minha casa - a tremer, lívida, aterrorizada.

XII.
Na escola primária, em Weimar, dois miúdos pegam-se.
- Idiota!, grita o filho de vietnamitas.
- Fiji-man!, grita o filho de alemães.

XIII.
Dos jornais: numa festa de solestício de Verão, numa aldeia perto da fronteira com a Polónia, um grupo de rapazes começou a atirar livros para a fogueira. Outros participantes na festa descobriram horrorizados que estavam a queimar o Diário de Anne Frank, e chamaram a Polícia.
"Anne Frank? Que Anne Frank?", perguntou o polícia na esquadra, e não se mexeu da cadeira.

XIV.
Dos jornais: Konstantin Wecker ia dar um concerto numa escola em Halberstadt (Sachsen-Anhalt), mas foi impedido pela NPD. Argumentos:
- trata-se de um cantor político, e se se permite política (de esquerda) na escola, então também serão obrigados a aceitar que a NPD organize nas escolas sessões para discutir temas nacionalistas;
- se o deixarem actuar, a NPD também vai ter uma participação activa no concerto.
O concerto foi transferido para outra cidade, em Thüringen.
Também em Halberstadt, um cabaretista ia apresentar o seu espectáculo ("Hitler Kebab", organizado em conjunto com a Câmara Municipal e uma união sindical) numa sala da Câmara. Por pressão da NPD, a sessão passou de pública a privada.


Adenda: sobre este tema, um artigo da jornalista Cristina Dangerfield-Vogt, saído no Portugal Post. 

10 comentários:

Cristina Torrão disse...

Sim, é assustador. Admira-me ainda não ter aparecido muito sobre os assassínios "Döner" na imprensa estrangeira. Estará o governo alemão a tentar evitar essa onda? Sim, porque isso irá prejudicar muito a imagem do país.

Tendo vivido sempre no ocidente, nunca tive problemas como os que a Helena refere na sua lista. Sabia que no território da antiga DDR havia mais extremismo, mas nunca pensei que fosse assim tão mau.

Mesmo a mulher-polícia assassinada parece que estava ligada ao movimento. Quer isso dizer que a Polícia do leste...

Isto ainda está no início, vamos ver se a verdade vem toda ao cimo (ou a maior parte dela). E pensar que tudo isto foi despoletado, apenas porque os outros dois se suicidaram (ou coisa parecida). Senão, ainda não sabíamos de nada!

Helena Araújo disse...

O que me espanta é como eu própria convivi com isto "como se fosse normal". Uma amiga nossa, de pele escura, recusava-se a ir a Weimar, por medo de um ataque neonazi, e nós diziamos que se ela evitasse determinados bairros e horas nocturnas não havia problema. Quer dizer: nós sabíamos, toda a gente sabe que isso acontece, mas ninguém foi capaz de ver que já se tinha ido demasiado longe.
Parece aquela história da rã dentro de uma panela em cima do fogo, com a água a aquecer lentamente.

ana disse...

o que é que os senhores das SI lá estavam a fazer? a espiar, ou eram mesmo do partido? há coisas que eu não percebo na alemanha e uma delas é como é que é possível existir um partido destes.

Helena Araújo disse...

Olá Ana,
pois isso é que não se percebe bem, e por isso o escândalo é tão grande: quem andava a espiar quem?

Quanto à proibição do partido: em 2002 não foi possível porque havia demasiados agentes em lugares importantes do partido - não se podia provar que o NPD é assim, eles podiam argumentar que assim só eram os agentes do Estado, pagos para os incriminar.

E também há um elemento interessante na discussão: enquanto forem legais, pode-se ver o que fazem. Se forem proibidos e passarem à clandestinidade, vai ser mais complicado saber o que andam a fazer. Não concordo, porque penso que na prática não funciona (como se viu) mas fica aqui registado.

E também há quem diga que uma Democracia tem de ter lugar para opiniões divergentes. A questão é: o NPD respeita os valores fundamentais desta democracia? Eles dizem que sim, e ainda não foi possível provar o contrário.

Finalmente: isto é só o princípio das dificuldades. Quando eles conseguirem começar a fazer um discurso populista e racista, mas construído de maneira tão inteligente que é inatacável (como acontece com o Geert Wilders, na Holanda) isto vai ficar ainda pior.

Gi disse...

Assustador, Helena, não fazia ideia.

Gi disse...

E enquanto foram bastante bem explicadas as razões históricas para o aparecimento do nacional-socialismo nos anos vinte do séc. XX, como se explica a força desses grupos agora?

Helena Araújo disse...

Não sei, Gi.
Sei algumas coisas: isto é um fenómeno que surge da falta de perspectivas nas regiões do Leste da Alemanha. A reunificação deixou chagas grandes (porque foi uma invasão e assimilação), há regiões em processo de desertificação e, segundo um artigo do spiegel, já há anos, as raparigas vão para onde há emprego, e os rapazes ficam na terra deles, desempregados, ociosos, e sem uma mulher que lhes meta juízo naquela cabeça...

Gi disse...

Obrigada pela explicação, Helena. Eu penso na Alemanha com todo o seu poder económico e esqueço-me que aí, afinal, também há áreas mais e menos desenvolvidas, com mais e menos perspectivas de futuro.

Helena Araújo disse...

Gi, apesar de todo o seu dinheiro, a Alemanha não tem como diminuir o ressentimento.
E é difícil fazer a correr, do lado oriental, o que o lado ocidental fez com muito esforço e ao longo de tantos anos.
Muita coisa está a correr mal por aqui. Mas tenho confiança na capacidade rápida de resposta deste país. Uma vez identificado o problema, tratam rapidamente da cura.

CCF disse...

Os nacionalismos curam certos vazios, infelizmente. Em tempos de crise ainda mais. E esse é um mal que a Alemanha não parece capaz de exterminar. Mas não são só eles. Eles só nos assustam mais porque aliam isso ao seu poder económico, e além disso há a história...
~CC~