15 agosto 2011

13.08.1961 - 13.08.2011 (14)

Do meio da multidão sobressaía o portador de um cartaz contra o aborto. De um lado lia-se:

"Pobres vítimas do muro"
-----------------------------------------
Psst: dos 1000 que todos os dias 
são mortos antes de nascer
- ao abrigo da lei -
não se fala aqui!

e do outro lado:

Porque é que os políticos 
não exemplificam aqui os "joguinhos" 
que querem recomendar às crianças 
no âmbito da "Educação Sexual"?

Incomodava muito, pois está claro que incomodava muito. A maior parte dos assistentes fez de conta que não via, ignorava o homem ostensivamente. Alguns tentaram falar com ele:




Uma pessoa gritou: "O senhor está a incomodar todos. Não é o lugar nem a hora para tematizar esse assunto. Leve o seu cartaz para outra rua."
Em vão. Ele retorquiu que neste país há liberdade de expressão, e continuou a avançar em direcção ao palco, onde começou a fazer uma pequena palestra justamente à hora de começar a conversa com testemunhas da construção do muro.


Muitos desviaram o olhar. Alguns começaram a vaiá-lo. E eu com eles, claro - Buuuuh! Buuuuuh! -, no que fui secundada pelas pessoas à minha volta.
Sentia-me invadida. Sentia-me profundamente agredida pelo sarcasmo daquelas aspas: "pobres vítimas do muro". Não queria ouvir o que aquele homem fazia questão de me dizer. E por isso gritava bem alto:
- Buuuh! Buuuuh!
Ele acabou por se ir embora.  Uma rapariga, com a cara desfigurada de raiva e escárnio, ainda lhe atirou pelas costas: "Já cá faltava a hipocrisia da nossa sociedade!"
Eu fiquei, um pouco envergonhada: não teria sido mais civilizado ignorá-lo ostensivamente enquanto falava? Talvez olhar para trás, conversar com a pessoa ao lado? Com o meu Buuuh!, que se ateou aos alemães que estavam perto de mim, contribuí para o avanço e amadurecimento da Democracia, ou para um pequeno retrocesso?

Que isto de civil courage e tal é muito bonito, mas o verdadeiro desafio é corrigir situações que consideramos incorrectas sem humilhar ou interpelar agressivamente o antagonista.

7 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Eu acho que a democracia se constrói em cada gesto, repito, em cada gesto e, como bem sabemos, o momento nem sempre escolhe o gesto. Fizeste muito bem. :-)

io disse...

Fizeste bem. Sem vaia, ele não se teria ido embora. Nestas coisas da democracia, da pluralidade, da liberdade de expressão, há sempre que saber respeitar a liberdade do outro e, manifestamente, o protesto dele não era dali. Fizeste bem.

Helena Araújo disse...

Cristina: há gestos de construção e gestos de destruição.
Nós vivemos ali uma espécie de guerra civil verbal: oponentes a atirar petardos uns contra os outros. Debate democrático é outra coisa.
O que eu gostava era de termos sido capazes de uma reacção que o fizesse compreender que não estava a agir bem. Mas não: às tantas, ainda saiu dali cheio de convicção para ir fazer outras do mesmo género.

io, ele ia embora, claro que ia embora. Em algum momento uma pessoa da organização viria dizer-lhe que não podia estar ali porque era o momento de dar início ao programa. E se ele se recusasse, seriam chamados dois simpáticos polícias que o levavam para a esquadra - porque as pessoas podem dizer o que entendem, mas não podem deliberadamente obstruir cerimónias públicas.

Agora, outra questão (eu a dar razão às duas, pois claro): vir feito emplastro para aquela cerimónia, com umas aspas provocadoras como aquelas (que só me apetecia esfregar-lhas na cara até ele ver a luz...) (ó pra mim, cada vez mais longe de receber o Nobel da Paz...), não é um acto democrático. Ele estava nitidamente a prostituir o princípio da liberdade de expressão.

Cristina Gomes da Silva disse...

"Ele estava nitidamente a prostituir o princípio da liberdade de expressão" e a obscurecer a memória do que não se pode repetir

Helena Araújo disse...

Pois, Cristina, e pior ainda: a desvalorizar.
"coitadinhas das vítimas do muro..."

Houve um moemnto em que pensei começar a cantar por cima da voz dele, contando com a participação dos outros à minha volta, mas só me ocorreu "as ideias são livres", o que era um pequeno contra-senso, no caso...

Luís disse...

Helena, muito obrigado pela descrição e pela coragem que revela ao contar essa incomodida que sentiu. O deu blog é magnífico e reconfortante lê-lo.
Estas férias reli O Espião que saíu do frio. Tão longínquo já esse tempo. Mas é forçoso que se não esqueça, que alguma coisa lembre, nem que seja a memória da calçada.

Helena Araújo disse...

Luís, obrigada e obrigada.
Esse tempo não é assim tão longínquo para mim. O pai de um grande amigo meu ajudava pessoas a fugir. Mas não quer falar sobre isso, nem sequer com a família. Imagino que algum dia alguma coisa terá corrido muito mal.
Em todo o caso, Berlim não esquece. Conhece esta cidade? É impressionante como se está permanentemente a "tropeçar" na História.