08 junho 2011

Jorge Semprún



Daqui a 10 anos, - dizia Semprún quando se comemoravam 60 anos da libertação de Buchenwald - já não haverá testemunhas deste crime, e cabe a nós passar testemunho da memória.
Sugeriu que cada família escolhesse uma vítima de Buchenwald para preservar o seu nome.

Jorge: vai em paz, não esqueceremos. Olha:


I.
9.4.05
"estas coisas são para guardar no coração"

Este é o fim-de-semana em que faz 60 anos que o campo de concentração de Buchenwald foi libertado pelos americanos.
A cidade acolhe os últimos sobreviventes, cerca de 500, e entre eles Jorge Semprún.
Esta manhã fui com a Christina a uma celebração ecuménica junto ao que resta da estação de caminho-de-ferro. Começámos por perder o shuttle, e hesitámos em usar o táxi, que custava 14 euros. A minha filha pediu "por favor, mãe, pago-te metade do preço com a minha mesada" - às vezes tenho a sensação que ando a fazer alguma coisa certa.
Estava um frio terrível, a chuva pousava nos nossos guarda-chuvas e transformava-se em gelo. A tremer de frio, olhando os quatro religiosos (um bispo católico, dois pastores da igreja luterana, um pope da igreja ortodoxa russa) naquele cenário estranho, recortados contra a névoa do descampado, imaginei como seria há 60 anos estar completamente exposto à prepotência e ao sadismo dos comandantes, obrigado a permanecer em formatura na parada, com frio e fome, por tempo indeterminado.
Foi estranho não haver um rabi presente. Mas foi importante o gesto unânime de pedir perdão, por parte dos cristãos - pelos actos, e pelas omissões.
No fim da celebração, um dos presentes avançou para o microfone num gesto espontâneo e começou a contar, em russo, apontando para os lugares com uma mímica plena de dor e emoção. O pope traduzia: "cheguei aqui com 16 anos, a estação estava cheia de nevoeiro, trabalhei ali, e ali, depois fui transferido" (e os gestos, e o silêncio e as lágrimas entre as palavras) "eu sou testemunha do que se passou aqui, eu vi, eu estive aqui!"
Segredei à Christina "se quiseres, podes dar-lhe a tua rosa", e ela queria, mas não sabia como, nem o queria interromper. A senhora que estava atrás de nós empurrou-a para a frente e, quase sem saber como, ela viu-se à frente daquele homem que chorava, ofereceu-lhe uma rosa, abraçou-o longamente.

"Porque é que ele chorou tanto quando lhe dei a rosa, mãe?"

(Se eu soubesse fazer as coisas para os media, tinha-lhe puxado o carapuço do casaco para trás, para lhe verem a cara. Mas não percebo nada disso, e agora vai haver por aí dúzias de fotografias de um sobrevivente russo abraçado a um casaco vermelho...)

Fui para Buchenwald sem máquina fotográfica, e amanhã voltarei lá, de novo de mãos a abanar.
Porque, como me dizia depois a Christina, "estas coisas são para guardar no coração."


II.
13.4.05
auto-retrato sumário

"E você é o quê?", perguntou-me o sobrevivente judeu.
Apanhada desprevenida, respondi a primeira coisa que me ocorreu: "uma pessoa."
"Sim, mas o que está a fazer em Buchenwald, porque se interessa por Buchenwald?"
Ia responder "para aprender a ser pessoa", mas percebi que não lhe interessavam metafísicas.

Arranjei uma outra razão qualquer, disse-lhe que Buchenwald está ligada à história da minha família desde que, nos primeiros dias da nossa vida em Weimar, me enganei no caminho para o supermercado, fui parar ao campo de concentração, e o Matthias de 5 anos perguntou "que terias feito se vivesses nessa altura?"
"E você explicou-lhes que aqui morriam pessoas apenas porque nasceram num grupo que os alemães decidiram exterminar?" (a sua voz tremia, mal conseguia articular
as palavras)
"Expliquei - e disse-lhes que imaginassem como seria alguém decidir matá-los por serem filhos de uma portuguesa."
"Você está a dar uma boa educação aos seus filhos."

(A Christina acha que não, mas isso é outra história.)


III

Pedimos aos nossos filhos que escrevam e façam desenhos sobre o que viveram este fim de semana, para criarmos um álbum de testemunho. Eles fazem parte da última geração que viu e falou com estas pessoas.
O Matthias foi buscar papel e caneta, fartou-se de discutir comigo porque queria fazer um rascunho e depois passar a limpo e eu dizia que isso não é tão importante, mas ele estava cheio de receios, e às tantas perguntou-me:
Achas que comece a carta com "Meus queridos filhos"?
Depois escreveu isto:

BUCHENWALD
No Domingo passado estive com a minha família em Buchenwald porque, há 60 anos, quando Hitler estava no poder, os americanos libertaram o campo de concentração.
No Domingo, dois prisioneiros sobreviventes tornaram-se amigos nossos. Chamam-se Nikita e Emil, e são amigos.
O meu pai descobriu que o Nikita tinha um cancro da pele. O meu pai queria operá-lo imediatamente. A operação demorou mais tempo do que tinha sido previsto, e no fim o meu pai veio em três jornais. Algum sangue espalhou-se para a região do olho, que ficou todo negro. No comboio, o Emil disse ao Nikita: "Quando fores ter com a tua mulher, dizes-lhe que quem te fez isso foram os bandidos."


IV
15.4.05
Despedida

Regressam a casa. Na plataforma da estação, esperam pelo comboio. O Nikita, o Emil, o Pjotr - o sobrevivente a quem a Christina deu a rosa no fim da oração ecuménica.
Sem tradutor, falamos assim: ele russo, eu português. De que adianta falar alemão, se ele também não entende? Ao menos o português é mais parte de mim (e tem um som mais próximo do russo).
Sem tradutor, sorrimos um para o outro.
Falei aqui há algumas semanas da dificuldade de não saber como falar com pessoas que sofreram o indescritível. Agora sei que é fácil: uma rosa, um abraço, um sorriso.
Olhos nos olhos, encontrar a pessoa para lá do peso de um número e de uma história que nos envergonha e horroriza.

E devolver-lhe o nome: este é o Pjotr.


V
Escolher um nome

De todos, o mais esquecido: Willy Blum. O ciganito que foi enviado para Auschwitz em vez da "criança na mala de cartão", o herói inventado pelo romance de Bruno Apitz. Assassinado pelos nazis, traído pela máquina de propaganda comunista. 

9 comentários:

Teresa disse...

A rosa da Christina fez-me chorar.

Helena Araújo disse...

E não foi só a ti, Teresa. Já lá vão mais de seis anos, e ainda me comove.
E a frase do Matthias, que tinha oito anos: "No Domingo, dois prisioneiros sobreviventes tornaram-se amigos nossos."

Devia ir vasculhar um pouco mais nesses baú do blogue, para contar sobre as reacções das pessoas quando lhes dizia que estávamos a pensar oferecer a nossa casa para acolher algum sobrevivente convidado, e outros episódios semelhantes...

Cristina Gomes da Silva disse...

:-)

Carla R. disse...

Não estou a fazer encomenda nenhuma... mas se fizeres essa vasculhice sobre a reacção das pessoas a essa tua oferta estou interessada. Recentemente propus a um amigo japonês que viesse aqui para casa, no seguimento do Tsunami, e fiquei mesmo muito triste com o que ouvi de pessoas proximas.

Helena Araújo disse...

Conto-te amanhã, está bem?
(não percas o próximo post)

m. disse...

O pai dos meus filhos já chamou às visitas aos campos de concentração da WWII, em que fiz questão de os levar comigo, um "pedagógico mas exótico percurso turístico pelo horror". Talvez por isso compreenda perfeitamente do que fala sobre a forma como os jovens podem, e se calhar até devem, ser expostos ao passado.

Em Fevereiro escrevi sobre os campos, e porque falou em Buchenwald, lembrar-me-ei sempre do olhar de lágrimas secas do meu filho mais novo, na altura com 21 anos. Desse campo, "oficialmente classificado como campo de trabalho, trago comigo para o resto da minha vida, o gancho de talhante na sala da morte, os ramos de flores frescas nos fornos do crematório e a mesa de dissecção, no bloco hospitalar, ao serviço de uma "ciência médica" do inominável. E a dor das mulheres trazidas de Ravensbrück para serem servidas no bordel ali criado. Buchenwald tem no seu portão principal a tradução alemã da frase latina "Suum cuique", um conceito que terá vindo da Grécia através de Cícero e de que encontramos reminiscências na parábola dos talentos da Bíblia. Mas Buchenvald não é o filme romântico dos anos 40 com o mesmo título nem "Jedem das Seine" é senão uma abominável ironia."

Gi disse...

Muito tocante, este post, todo ele. Obrigada, Helena.

Xexão disse...

Muito bonito, Helena. Grande abraço Xexão

Helena Araújo disse...

Obrigada, Xexão!
Obrigada, Gi!