Num dos livros da minha escola primária havia uma história em forma de verso que me impressionou tão fortemente que ainda hoje falo disso, como se vê. O lavrador da Arada ia a caminho de casa quando encontrou um pobrezinho que lhe pediu ajuda, e ele levou-o para casa, deu-lhe "do melhor manjar que havia", mandou-lhe fazer a cama "da melhor seda que tinha, por cima damasco roxo, por baixo cambraia fina", etc. No dia seguinte, em vez do pobre, o lavrador encontra um crucifixo. Era Jesus Cristo, pronto, que logo ali lhe prometeu que tinha um lugar para ele no céu, e eu cheia de pena do lavrador que era tão boa pessoa mas pelos vistos ia morrer para ir desta para melhor.
Lembrei-me disto porque ontem tive um encontro imediato de terceiro grau comigo própria a fazer de lavrador da Arada, mas sem a parte do crucifixo, por sorte.
Contando a história a partir do princípio: o Matthias perguntou-nos se podíamos ter cá em casa por dois meses um miúdo colombiano que veio para aprender alemão e está na turma dele. E nós que sim senhor, e eu arranjei o quarto das visitas o melhor que pude para o rapaz se sentir bem nestas semanas que passa longe da família. O Miguel é amoroso, muito bem-educado, sempre grato pela comida que lhe cozinho, nada complicado. Já lhe fiz uma proposta de adopção, mas ele riu-se.
Deu-me um envelope com 700 euros para pagar as despesas dos dois meses. Setecentos euros? Ele estará à espera que eu lhe sirva caviar ao pequeno-almoço? Disse-lhe que era um exagero, e que temos de fazer outras contas.
No sábado de manhã recebi uma enorme orquídea enviada da Colômbia, e um cartãozinho de feliz dia da mãe. Ontem telefonou-me o pai dele. Que o Miguel se está a sentir muito bem na nossa casa, e que ele vem cá passar um fim-de-semana para ver o filho, e que vai ficar hospedado no hotel Ritz-Carlton (o da Potsdamer Platz, o hotel onde ficam as maiores estrelas da Berlinale, entre outros VIPs), e que nos convida para jantarmos todos com ele lá (aimeudeus, vou ter de me disfarçar outra vez de senhora). Perguntou-me se o Miguel tinha mostrado fotografias da família e da casa. Não, disse eu. Ele que mostre, disse o pai. Desconfio que sei onde é que isto vai dar: vou ver pelos cenários que tenho cá alojado o filho de um magnata.
Não quero ver. Prefiro o Miguel só assim: um rapaz amoroso de catorze anos, bem educado e brincalhão.
***
O que fizerdes ao mais pequenino dos meus irmãos é a mim que fazeis. (Mt. 25, 40)
Pois sim. Ajudar um pequenino para descobrir depois que é o pequeno lorde, ainda vá. Assim não custa nada ser cristã.
Mas que diria o lavrador da Arada se o pobrezinho lhe tivesse fugido com a melhor seda que havia, o damasco e a cambraia? A minha avó tinha um quarto no quintal, para os sem-abrigo, e passavam a vida a roubar-lhe o colchão e o cobertor.
O convite a ser cristão é também um convite a um persistente despojamento. Ainda tenho muito que andar.
9 comentários:
Não queiras ver nem saber, Helena. Magnata colombiano é capaz de ser barão da droga.
Digo eu, cuja caridade, cristã ou outra, anda um bocado temperada.
Pode, é verdade, mas não tem de ser necessariamente. Era o que faltava eu estar a fazer juízos sobre uma pessoa que nunca vi e cuja história não conheço. A única coisa que sei dele é que tem um filho amoroso e muito bem educado.
Helena, é fantástica! Acontece-lhe cada uma que nem dá para acreditar, mas eu acredito em tudinho! Anseio pela reportagem do jantar.
Lucy, pode acreditar. Eu era lá capaz de inventar uma história destas? A da minha avó também é verdade.
Lembra-se quando nos conhecemos, naquele encontro com o Tolentino? Ele estava a falar justamente de ver Jesus nos outros, eu contei a história do operário a quem servi café e bolachinhas na varanda, e que me roubou o ouro das avós. E ele: "pudesse eu ter mais para ter dar". E eu: ando com essa atravessada desde então.
maravilha...
Esse encontro foi mesmo bom, não foi? Ainda agora me lembro do gozo que fizeram ao meu "comer frango de aviário na clandestinidade".
A penúltima frase no meu comentário anterior era assim:
E o Tolentino: "pudesse eu ter mais para te dar".
é uma delícia esta história. mas, convenhamos... da Colombia para estudar em Berlim não podia mesmo ser um pé de chinelo; ou podia?
a rosário acima tirou-me a expressao da boca - que delícia.
e sabes, deve haver praí um adágio, daqueles religiosos, tipo 'quem o bem faz o recebe em triplicado', algo assim, que se aplique aqui.
conta tudo do jantarola.
Rosário: eu não pensei. O meu filho perguntou se podíamos dar asilo ao rapaz, e nós demos.
Sem-se-ver: e vai haver jantarola também cá em casa. Depois conto tudo, fica descansada.
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