Parece-me que ganhei um novo vício: o Bach-Chor da Kaiser Wilhelm Gedächtnis Kirche, um coro com cinquenta anos e cerca de oitenta cantores,
(e quase metade deles homens, vi com estes que a terra e tal, podem crer, valhósdeus! - e agora suspiro, com uma pontinha de inveja, que bem sei como é difícil arranjar homens para os coros, ali estão quarenta e no meu coro, hã? - de momento, zero)
interpreta em ritmo quinzenal cantatas de Bach para acompanhar os serviços religiosos. E, se querem saber tudo: a entrada é gratuita.
Ontem cantaram a Paixão segundo S. João. Aaaaah.
Pois lá fomos, e encontrámos amigos que tinham feito gazeta à missa de Sexta-Feira Santa, considerando que aquele concerto era cerimónia suficiente. Espertos, pensámos nós, e anotámos logo a ideia para o próximo ano.
Antes de começar, o maestro pediu ao público que no fim não aplaudisse "mesmo que tivessem vontade de o fazer..." - o público riu (mas discretamente - foi quando desconfiei que não eram apenas os nossos amigos que faziam daquele concerto o momento espiritual do dia).
Às vezes achei a interpretação demasiado bombástica. Eles provavelmente sabem melhor que eu como se deve cantar aquilo, mas pronto, não cantam Bach à minha maneira, é o que é...
Outras vezes, achei sublime. Gostei especialmente dos momentos de puro mob, quando o coro dava voz à multidão enfurecida, "crucifica-o! crucifica-o!" ou "não escrevas, não escrevas, não escrevas Rei dos Judeus". E também daquele momento do mais cínico fundamentalismo "nós temos uma lei! nós temos uma lei! nós temos uma lei!"
Já lá vão três séculos, já lá vão dois milénios, e permanece tão actual.
Bach integrou nas suas oratórias e cantatas melodias e textos já existentes, vindos sobretudo da época da Reforma, e que ainda hoje são cantadas nas igrejas. O que complica a vida do público, porque temos de nos reprimir para não cantar com o coro. E talvez fosse essa a ideia, no tempo em que Bach presidia à execução na sua igreja em Leipzig, e as oratórias eram parte da celebração religiosa com o povo.
Quando a última nota se extinguiu, só os que tinham chegado atrasados bateram palmas e, pelo silêncio obstinado dos outros, perceberam rapidamente que deviam ficar quietos. Pelo que o arrebatamento não foi quebrado. Aaaah, que coisa boa: sair de um concerto assim sem o alvoroço dos aplausos.
4 comentários:
Obrigado pelas notícias.
Não sei, Helena, aplaudir pode ser uma libertação de energia que se foi acumulando durante a audição. Se não a gastarmos assim, na hora e de forma apropriada à causa, como fazemos?
Pode, Gi. Mas muitas vezes, com o som dos aplausos, lá se vai a atmosfera criada pelos músicos.
Eu gosto do aplauso dos surdo-mudos: levantar as mãos, com os dedos esticados, e fazê-las vibrar. A sala fica em festa, as pessoas podem largar a energia que quiserem, mas não se quebra o eco do música.
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