18 fevereiro 2011

Tomboy



(na janela do vídeo há um botão, no canto inferior direito, para mudar a língua de alemão para francês)

Tomboy foi o filme que vi ontem, numa sala cheia de turmas do ensino primário e secundário. Uma história simultaneamente leve e densa, contada como a água que corre e às vezes acelera em rápidos inevitáveis, com um grupo de excelentes actores entre os 5 e os 12 anos. Em traços breves: uma menina que gosta de brincar com os rapazes e vestir como eles muda com a família para uma casa nova e escolhe dizer aos amigos novos que é um rapaz. A mentira vai-se aguentando ao longo do filme, e a menina vai-se enterrando cada vez mais na história que inventou. No fim, acontece o que tinha de acontecer: descobre-se tudo.

Pareceu-me ser mais uma história sobre a mentira que uma história sobre identidade sexual. Não se sabe de onde vem essa vontade de se dizer rapaz, não se sabe como vai evoluir, mas o que o filme mostra com clareza é a ameaça latente de ser descoberta, e o modo como outra menina se torna refém desta mentira.

Ao vê-lo lembrei-me muito de um outro, um documentário dinamarquês que vi há dez anos (já não me lembro do nome), sobre um rapaz que gostava de viver como uma rapariga. O filme mostra o rapaz a maquilhar-se com outras miúdas, a ir com elas às compras e a experimentar vestidos: um miúdo que assume a sua verdade com enorme naturalidade, e que é aceite por todos.

No fim do filme a produtora subiu ao palco para conversar com o público. 
Duas miúdas, aí dos seus 10 anos, começaram a fazer perguntas. A princípio envergonhadas - começa tu, não, começa tu! -, lá foram disparando:
- Porque é que o filme se chama Tomboy?
- Porque esse é o nome que em inglês se dá a raparigas que querem ser como os rapazes.
- O que faz uma produtora?
- Uiii... (e toca de explicar)
E uma delas, aos risinhos:
- A Lisa e a Laure beijaram-se mesmo na boca?
- Sim. Mas explicámos-lhes que estavam a contar uma história, que aquilo não era uma coisa da vida delas mas um papel que estavam a interpretar.
Nesse momento, uma mulher do público levantou-se e gritou para a sala:
- Mas atenção: há raparigas que beijam raparigas e rapazes que beijam rapazes! Não se esqueçam disso!
Os miúdos continuaram o interrogatório:
- Os actores já se conheciam? Sim, a Laure (a personagem principal) trouxe os seus amigos rapazes, porque não havia tempo para criar uma boa dinâmica de grupo entre crianças que se desconheciam.
- E a irmã mais nova, e a Lisa? Essas não conheciam a Laure.
- Quanto tempo duraram as filmagens? Vinte dias.
- Como é que descobriram estas crianças? (pergunta seguida com muita atenção por muitos na sala, obviamente: quem pensa fazer carreira no mundo do cinema...) Foi uma "caça-talentos" que os procura no supermercado, no parque infantil, na rua. A Laure tinha cabelos compridos, mas gosta muito de jogar futebol e de facto tem uma maneira de andar um pouco masculina.
Aí, entrou de novo a mulher que já tinha interrompido por causa dos beijos:
- No filme há uma definição muito clara de géneros: as raparigas são muito raparigas, os rapazes são muito rapazes. Porque é que os fizeram assim a preto e branco?
A sala foi percorrida por um eco de impaciência. A produtora respondeu uma coisa qualquer.
A outra voltou à carga:
- A reacção da mãe foi muito violenta. Havia necessidade? No filme "Ma vie en rose" a situação é resolvida com muita mais alegria e leveza.
(E eu a pensar: ó mulher, se queres missionar, faz o teu próprio filme! Não imponhas aos outros que filme é que eles têm de fazer para passarem a tua mensagem.)
As pessoas começaram a abandonar a sala.
A produtora respondeu ainda que estavam simplesmente a contar uma história, que "Ma vie en rose" também tem situações de muita violência, e que a reacção da mãe é a de alguém que confronta a filha com a sua realidade, a partir da qual ela terá de se construir alguma coisa.
E mais palmas, e fomos todos embora.

No foyer do cinema tinha vários cartazes de filmes da Berlinale para crianças e jovens, e eram bastante apelativos. No próximo ano, já sei o que vou fazer melhor: ler com atenção também esta parte do programa. Tanto mais que os bilhetes são bem mais baratos: 3 euros.

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