23 fevereiro 2011

a queda de um anjo (2)

O ministro mais querido dos alemães, Karl-Theodor zu Guttenberg, está a ter uma semana terrível: alguém descobriu que o seu trabalho de doutoramento está cheio de citações sem indicação da fonte, na internet apareceu logo um grupo de voluntários a passar o trabalho dele a pente fino, e o que há uma semana era um conjunto de erros involuntários e sem significado num trabalho de quase 500 páginas e 1.200 anotações é, passados uns dias, um erro grave que o leva a prescindir voluntariamente do título académico.
A Universidade lembra que só a ela compete conceder e retirar títulos académicos, e afirma que vai analisar o trabalho com toda a calma e sem se sujeitar a qualquer espécie de pressão. Tarefa ingrata: por um lado, não podem criar um precedente. Por outro lado, dava muito jeito a muitos poderosos, e a 70% do povo em geral (segundo uma sondagem recente), que a Universidade não encontrasse motivos para o acusar de plágio. Contudo, nos tempos da internet a margem de manobra da Universidade reduz-se imenso. Como dizer que esta barra, permanentemente actualizada no site GuttenPlag Wiki, não é significativa?

( Legenda: Azul - páginas não verificadas. Branco - páginas onde não foram encontradas passagens citadas sem referência da fonte. Preto - páginas onde foram encontradas essas passagens. Vermelho - páginas onde foram encontradas essas passagens, mas provenientes de mais que uma fonte.)

A oposição exige que ele se demita. A Angela Merkel diz que ao Governo pouco interessa o seu título académico, e que um ministro tão bom como ele faz muita falta, sobretudo nesta fase em que está a fazer reformas fundamentais na área da Defesa. As pessoas do seu partido também o apoiam, bem como o povo (70%). Os meios de comunicação social é que estão a estragar tudo: e que não pode ser, e que se este político subiu de forma tão meteórica foi justamente por encarnar o ideal de honestidade e transparência, e que não pode agora começar a tentar separar as áreas em que é honesto (política) daquelas em que se permite erros graves (académica). Que uma pessoa ou é honesta ou não é, e que a defesa da Democracia e do Estado de Direito exige que se trate este caso de forma exemplar.

Chegados a este ponto, lembro Willy Brandt, que foi para a rua quando se descobriu que o seu secretário era um espião da RDA - e que culpa tinha ele? E quanta falta não fazia ao país?
Lembro Margot Kässmann, que foi apanhada a conduzir embriagada e se demitiu dois ou três mais tarde, apesar de ter o apoio da sua Igreja e haver por toda a Alemanha grupos de cristãos que rezavam para que ela continuasse a ocupar o seu posto (contei parcialmente aqui).

Guttenberg prestou declarações no Parlamento esta manhã, e desculpou-se dizendo que só agora se deu conta de como estava sobrecarregado de trabalho (como político, académico e jovem pai de família) e que obviamente isso se reflectiu na qualidade do texto. Assumiu que cometeu erros, garantiu que não o fez propositadamente, pediu desculpa. Avisou um deputado que insistia em usar a palavra "plágio" que isso pode representar um acto de difamação, e consequente processo jurídico. Aguentou valentemente o gozo dos deputados que faziam questão de o tratar por "dr.", manteve todo o tempo uma atitude de pacífica humildade. A sessão recomeçou há pouco, veremos no que vai resultar.

Será que escapa?
Espero que não, apesar de simpatizar muito com ele. Espero que não, por esta razão muito simples: se começámos a aceitar desculpas do género "estava sobrecarregado, não reparei", escancaramos as portas à palhaçada. Deixa de haver responsabilidade e imputabilidade.
Melhor seria que ele se afastasse da política por uns tempos. Se ficar, todo o país paga um altíssimo preço. O mais irónico: este era o político que vinha redimir todos os políticos, o homem sério, de uma independência e verticalidade a toda a prova...

7 comentários:

jj.amarante disse...

Já com o PRD foi a mesma coisa, depois de se falar muito mal dos partidos políticos as pessoas tiveram a esperança que o Partido Renovador Democrático (promovido pelo Gen.Ramalho Eanaes) iria ser formado exclusivamente por seres angelicais. Passado pouco tempo constatou-se afinal que eram seres humanos, como os dos outros partidos.
O problema da falta de qualidade dos políticos resolve-se instituindo regras e mecanismos que os ajudem a não cair em tentação e não tentando descobrir seres humanos alegadamente perfeitos.
Neste caso específico, com tanto desempregado, irrita-me alguém alegar que está com trabalho em excesso, trata-se de um caso de açambarcamento de um bem escasso.

Paulo disse...

Uma carga de trabalhos. Imagino a ralação da Frau Merkel, sem saber o que fazer. Também acho que ele devia demitir-se e retirar-se por uns tempos. Depois reaparecia como Freiherr von und zu Guttenberg, que, assim como assim, ainda é melhor que doutor de qualquer coisa.

Helena Araújo disse...

Paulo,
a Merkel está a sair um bocadinho mal na fotografia. Diz que não se interessa por questões académicas, e tenta ficar de fora. Mas isto não é uma mera questão da universidade, é uma questão da honestidade de um ministro...

jj.amarante,
é, o episódio PRD (caramba, já foi há 20 anos!) e mais aquela ideia do "partido dos homens bons": ilusões.
Não precisa de se irritar: o que mais há é gente que tenta fazer um doutoramento (e mais ainda: um mestrado) a par do emprego normal. Tanto quanto sei ele não era assistente universitário e deputado, estava simplesmente a trabalhar para conseguir um grau académico.

Ant.º das Neves Castanho disse...

Também acho que se deveria demitir. Por este andar, qualquer dia teremos os criminosos mais habilidosos a serem admitidos na Polícia, porque sabem usar com muita perícia as armas de fogo...


Não haverá na sabedoria popular alemã algo equivalente a "quem tudo quer..."?

Paulo disse...

Acabei de ler que a Universidade de Bayreuth lhe anulou o doutoramento.

ANTIFALSIDADES disse...

Ui! Finalmente um escândalo na Alemanha...Só espero que a economia europeia aguente este embate:))

Mónica disse...

concordo "se começamos a aceitar desculpas" perde-se a credibilidade