25 fevereiro 2010

a propósito do caso Margot Kässmann



Margot Kässmann, a presidente do Conselho da Igreja Evangélica Alemã demitiu-se ontem desse cargo, e também do de bispo de Hannover, na sequência de um incidente ocorrido sábado passado, em que foi detida por estar a conduzir embriagada.

Por coincidência, no mesmo fim-de-semana, o cardeal Georg Sterzinsky fizera ler nas paróquias berlinenses uma carta pastoral (aqui, em alemão) onde referia a exigência e as expectativas dos católicos em relação à sua Igreja que, por motivos vários (e nomeava explicitamente o escândalo de pedofilia que tem chocado o país), vão dando lugar à frustração e ao afastamento. A Igreja de Deus é uma Igreja de pecadores, dizia o cardeal, e acrescentava: isto não é uma constatação, mas uma verdade da fé, que a Igreja tem conhecido nestes dois mil anos de história; ela é a comunidade para a qual o Senhor fala, e é para os pecadores que Ele fala, para que se convertam e santifiquem, sabendo contudo que eles serão sempre tentados pelo pecado.
Concluindo, um pouco adiante: "Por isso fico na Igreja. Não porque ela seja uma comunidade elitista de personalidades de elevada moral, mas porque é este "povo de pecadores". E, dado que também eu sou um pecador, é esta a minha Igreja, na qual permaneço, porque só ela me dá esperança e futuro. Igreja de pecadores para pecadores -, para se tornar Igreja de santos."

A carta toca outros aspectos, mas este interessa-me particularmente porque denota uma atitude oposta à patente na demissão de Margot Kässmann, tal como ela própria explica:

(texto original aqui, tradução do Speedy Gonzalez):

"Na noite de Sábado passado cometi um erro grave, que lamento profundamente. Mas, mesmo que o lamente e faça a mim própria todas as recriminações que se justificam numa situação como esta, não posso e não quero ignorar que feri a instituição e a minha autoridade como bispo e presidente do Conselho.
A liberdade, que até agora tive, para apontar e analisar desafios éticos e políticos, iria desaparecer no futuro. Só é possível manter-se firme perante duras críticas - como as que, por exemplo, foram suscitadas pela frase "nada está bem no Afeganistão" - se existe um reconhecimento incondicional do poder de convicção pessoal.
Um dos meus conselheiros lembrou-me ontem uma frase do Eclesiástico: "Segue o conselho do teu coração" (37,17). E o meu coração diz com clareza: falta-me a autoridade necessária para continuar este serviço. Algumas das leituras que tenho feito não são compatíveis com a dignidade deste cargo. E, para além deste cargo, também estão em causa o respeito e a consideração pela minha rectidão, que me são muito importantes.
Declaro que me demito imediatamente de todos os meus cargos eclesiais.
Durante mais de dez anos fui bispo, serviço que desempenhei de corpo e alma, e ao qual entreguei todas as minhas forças. Continuarei pastora da Igreja de Hannover. Nos 25 anos que se seguiram à minha ordenação acumulei diversas experiências que levarei com gosto para outros locais.
Lamento decepcionar tantos dos que me pediram para permanecer neste cargo, sim, dos que com confiança me escolheram para ele. Agradeço a todos os que me apoiaram e ampararam, agradeço todas as mensagens e flores que nestes dias tão bem fizeram à minha alma. Agradeço penhorada ao Conselho da Igreja Evangélica Alemã (EKD) a confiança que ontem manifestou claramente. Agradeço a ajuda de todos os colaboradores e colaboradoras da Igreja de Hannover e da EKD, funcionários e voluntários. Em especial, agradeço à minha equipa mais próxima, que em situações difíceis se manteve leal. Agradeço a todos os amigos e amigas, a todos os bons conselheiros. E agradeço às minhas quatro filhas o apoio manifesto e claro à minha decisão, e a sua presença aqui neste momento.
Para terminar, algo que aprendi com outras crises: nunca se cai mais fundo do que nas mãos de Deus.
Também hoje me sinto grata por esta confiança que me vem da fé."

Embora os seus defeitos não sejam ignorados, esta mulher é muito apreciada, e não apenas entre os evangélicos. Ainda recentemente o Presidente da República louvava as suas intervenções (embora não concorde inteiramente com tudo o que diz, acrescentava) e afirmava que pessoas como ela fazem falta na nossa sociedade.
Hoje, encontro na internet imensos comentários lamentando esta decisão. As pessoas compreendem e respeitam, mas sentem que é uma grande perda para este momento da sociedade alemã.
A Alice Schwarzer afirma que é uma decisão errada, e que "se fosse homem não teria agido assim". A televisão mostrava ontem imagens de pessoas nas igrejas, em oração para que ela não desistisse deste cargo.

E então vem a Sábado, e diz assim: "A líder religiosa encontra-se de novo na mira da imprensa. Já a sua eleição havia sido polémica, devido ao facto de ser mulher e divorciada."
É o mundo em versão Tom e Jerry.

4 comentários:

Rita Maria disse...

Muito bom, o post e a crítica. Às vezes penso no que o facto de, cada vez que lemos notícias sobre a Alemanha, ficarmos a pensar que Alemanha conhecerao eles, quererá dizer sobre as outras notícias sobre outras realidades que conhecemos menos. (escrevi isto numa frase muito comprida para tu nao perceberes logo que estava a dizer mal de jornalistas, senao ainda pulavas na cadeira e levantavas o pó)

Mas PS: O mundo da Alice Schwarzer também nao é muito diferente do da Sábado,pois nao?

Helena Araújo disse...

Rita,
aprende: não são "os jornalistas", são "alguns jornalistas". ;-)

Eu fiquei a pensar que o papel de um jornalista é muito complicado. Como é que ele se pode informar a toda a velocidade, se nem sequer conhece a língua do país? Se não acompanhou o debate na altura da eleição daquela mulher divorciada? Este artigo não deve ter sido feito pelo correspondente na Alemanha - imagino.

Não concordo que o mundo da Alice Schwarzer não é muito diferente do da Sábado - acho que é completamente outro! A Sábado (vá, o tique no fim da notícia) é Tom e Jerry, enquanto a Alice Schwarzer é Mônica e Cebolinha, Calvin e Susy.
;-)

Helena Araújo disse...

Agora, Rita, outra questão: gosto mais da perspectiva do cardeal. Assumir com humildade os erros, a nossa condição de pecador.
Ela exige de si própria uma perfeição que é impossível de atingir. Tem de ser possível falar de opções éticas e políticas mesmo tendo em algum momento cometido um erro grave.

Rita Maria disse...

No caso do jornalista, é facílimo: se nao sabe, nao escreve. Se quer saber telefona para o conselho da igreja evangélica, telefona a um colega estrangeiro, paga a um tradutor, procura notícias noutros meios. E se depois disso nao souber, nao escreve. Nao acho este papaguear de informaçoes superficiais nada desculpável, parece o Daniel Oliveira.

Na questao do cardeal, eu até podia concordar contigo, mas a própria natureza da tal condiçao de pecadores tem de ditar liberdade na forma da sua expiaçao e no significado que lhe queremos atribuir. Nao acho que haja aqui uma diferença entre um bispo, um padre, tu ou eu: devemos decidir, a cada momento, se nos sentimos em condiçoes de continuar a desempenhar as funçoes que desempenhamos. E com essa liberdade a obrigaçao também de perceber quando já nao temos essas condiçoes.

Acho que ela nao diz "sou uma grande desgraça", diz "acho que nestas condiçoes nao me sinto capaz de ter uma pessoa de referência da credibilidade de que gosto que este cargo seja dotado". Eu concordo já que é imensa pena e parece um enorme desperdício, mas provavelmente fazia o mesmo.