Li o livro Caim, de Saramago, com uma mistura de sentimentos: por um lado a beleza da escrita, por outro lado o embaraço do conteúdo. É que fica mal a um Nobel da literatura fazer tão teimosamente questão de ler a Bíblia daquela forma literal. Que uma pessoa não tem de nascer ensinada, é certo, e nem todos terão oportunidade de ler cursos de introdução à Bíblia que começam assim: "a Bíblia é como um álbum de fotografias de uma família, que vai mostrando como essa família evoluiu". Mas um Nobel da literatura em algum momento terá sido entrevistado por um jornalista que fará perguntas difíceis sobre "a propedêutica da simbologia poética" e "a economia narrativa das imagens simbólicas", e ele, mesmo que não entenda, dá uma resposta de bola ao canto "com certeza terá visto nas entrelinhas dos meus últimos romances que essa é uma das minhas preocupações centrais, o que uma leitura atenta não deixará de confirmar" e depois vai para casa e googleia um bocadinho, e é assim que se aprende. Se não for de outra maneira.
Mas não, parece que nunca nenhum entrevistador lhe fez perguntas sobre a propedêutica da análise da Bíblia, de modo que o Saramago acaba por me escrever aquele livro onde aparece desamparadamente nu, a exibir uma ignorância que me embaraçou, porque não sou de voyeurismos. Um livro onde as imagens que relatam a evolução de um povo (ou, mais precisamente, a evolução da intuição teológica de um povo) são confundidas com uma verdade eterna e imutável.
A internet pode ser usada como Saramago usou Caim: como testemunha de acusação, implacável e violentamente cega, neste caso virada contra uma pessoa e não contra um conceito de Deus.
(Aposto que já estavam a desconfiar por eu não escrever um postezinho sobre o wikileaks e o futuro da internet...)
A internet regista cada um dos nossos momentos, e tem uma poderosíssima memória. Daqui a vinte ou trinta anos, alguém poderá pescar uma fotografia ou uma frase infeliz postada na adolescência, num momento de euforia ou depressão, sei lá, e armar um pequeno processo em tribunal popular. Que adiantará argumentar que isso pertence ao passado, que não foi essa a intenção, que foi uma fase, que as pessoas evoluem?
Na internet, as pessoas não têm o direito de evoluir ou de ser vistas no contexto particular do momento. Ou muito me engano, ou há aqui um trabalhinho que o Tribunal dos Direitos Humanos vai ter de fazer, e muito em breve. Que as pessoas não têm a capacidade de encaixe do Deus de Saramago. E já tem havido um ou outro suicídio - sinal de que a pressão se pode tornar insuportável.
5 comentários:
Tive uma educação católica com direito a catequese, e profissão de fé e crisma e tudo.
Nunca em qualquer momento do meu curto percurso pela igreja católica me foi sugerido a mim ou a alguém que eu conheça que lêssemos cursos de introdução à bíblia. A maior parte dos "factos" eram para ser levados à letra.
Durante centenas e centenas de anos que a bíblia foi levada à letra e publicitada como verdade absoluta.
Podem-me dizer que deus ordena a um pai que sacrifique o filho para provar a deus o quanto o ama, é apenas uma metáfora, mas no meu entender não pode haver nada de mais cruel, quer seja para mostrar a evolução de uma família.
Curiosamente, as partes da bíblia que Saramago pegou são as mesma que sempre me atrofiaram com o sistema nervoso.
Achei o livro excelente. Ri-me bastante com o sentido de humor acutilante do escritor e só tenho pena que tenha morrido sem escrever muitos mais.
Margot,
e se fosse só a Bíblia que a Igreja leu à letra! Mas consegue fazer pior: consegue criar leis que vão contra a letra da Bíblia...
Contudo, as coisas estão a melhorar, já há várias décadas. Vamos ficar presos ao passado, e fazer de conta que o presente não existe? Que não houve evolução? Que não se vêem melhorias? Que a Igreja é incapaz de aprender com os seus erros?
A experiência que eu tenho feito é esta: sempre que uma passagem da Bíblia me atrofia o sistema nervoso, dedico-me a estudar para perceber o que está por trás daquilo. Por isso me incomodou em particular o episódio de Job: uma história onde se pretende que o Povo de Deus passe para uma fase mais madura do seu entendimento sobre Deus: não é castigador, mas misterioso - se nós não sabemos porque é que a vida nos corre mal, é um erro dizer que foi castigo (ainda para mais: merecido) de Deus. O livro de Job é apenas isso: quem és tu para achares que podes interpretar a vontade de Deus? Não invoques o nome de Deus para castigar e humilhar o teu próximo.
E o que faz Saramago? Pega na história tal e qual está lá, e diz que Deus é um sádico perverso. Ou seja: Saramago dá um salto de milhares de anos para trás, põe-se no nível teológico arcaico do tempo anterior a este livro.
A história de Abraão também me incomoda. Ainda não encontrei nenhum texto que ma explicasse convenientemente. Mas há um episódio da vida de uns amigos meus que lançam alguma luz sobre isso. Eles tinham tido gémeos prematuros que passaram o primeiro ano sempre em risco de vida. Quando os miúdos estavam a fazer um ano (e já tinham milhentas reanimações, vários internamentos nos cuidados intensivos, avisos alarmistas de vão morrer hoje, vai sobreviver mas fica cega, vai entrar em morte cerebral, etc.) os pais foram à missa de Natal, e levaram os bebés. Um pouco adoentados, para variar. E houve um momento em que a mãe põs o bebé que tinha ao colo na mão de Deus: "toma-o tu, resolve tu, eu já não tenho forças para mais". Talvez este despojamento e esta confiança no meio do mais profundo desespero sejam a chave
para entender o episódio de Abraão.
Quanto aos livros do Saramago: fantásticos. Excepto aquela pedra no sapato que ele tem contra a "Santa Madre", que se manifesta a propósito e a despropósito, e torna a leitura um pouco pesada porque se está sempre a tropeçar nas limitações do escritor. Não havia necessidade...
Este verão reli o Memorial do Convento, pelo puro prazer de o redescobrir. E comecei a desconfiar que deve ter havido um padre pedófilo na infância do escritor. Só assim se explicaria aquela fixação...
Durante centenas e centenas de anos a Igreja abusou da credulidade dos crentes e lucrou com a crendice ingénua e ignorante. Deveria ter-se moderado um pouco no seu desmedido oportunismo e, sobretudo, sido mais previdente e ter previsto a maioridade da Humanidade.
Eu também não vou continuar eternamente a dizer aos meus Filhos que o Pai Natal existe mesmo e que vem do Polo Norte trazer-lhes as prendas que eles lhe pedirem por escrito. O mais velho, ainda só com quatro anos, este Natal já começou a dar-me um cheirinho das perguntas difíceis que vêm aí em catadupa, quando ontem me atirou com esta, no carro: "- Mas ó Pai, por que é que o Menino Jesus nasce todos os anos?"! E eu lá tive que me safar conforme pude, com a pouco mais que titubeante ajuda da Mãe...
E não é que vamos discordar outra vez?
Custa-me muito ouvir essas afirmações sobre a Igreja abusar e lucrar e não perceber e só estar aí a travar tudo. Se algum católico (seja ele Papa, seja ele o mais remoto leigo) faz alguma coisa de jeito, ou as pessoas fazem questão de ignorar o facto, ou dizem que "esse é diferente dos outros". Aqui está um preconceito grave: a Igreja é muito má por definição, e se volta e meia aparece por lá uma pessoa que até não é má de todo, isso é a excepção que confirma a regra.
Por acaso até penso que a maioridade da Humanidade passa pelo convite ao amor feito por Jesus Cristo. Mas isso sou eu, e não obrigo ninguém a vir comigo.
Quanto ao menino Jesus: quem é que disse que ele nasce todos os anos? O que a gente festeja é o seu aniversário.
Nós não queríamos essas tretas cá em casa. Queríamos explicar aos miúdos que damos presentes naquele dia para festejar o nascimento de Jesus, só isso. Até que a Christina, com dois anos e meio, nos disse: "estou muito curiosa para saber o que o Menino Jesus me vai dar". Ela é que fazia questão de acreditar! E nós respeitámos a sua vontade, enquanto foi importante para ela.
Pois, mas para o César ainda é muito difícil não concluír lógicamente que, se o José todos os anos anda doido à procura de uma hospedaria que não encontra e se a Virgem Maria está mesmo à espera de um Filho, como todas as Canções de Natal afirmam, é porque Jesus ainda está para nascer e isso vai acontecer no dia de Natal! Mas claro que a minha estrutura argumentativa também foi a de que no Natal se celebra só o nascimento, que já ocorreu há muitos anos e tal... E acho que ele lá avançou mais um pouquinho nesse complexo entendimento.
Quanto à Igreja, bem, não vale a pena começares já a lançar-me com toda a tua artilharia pesada! Eu, a correr para a trincheira, ainda te aceno frenéticamente com um cartaz onde se lê "não é lá por ter plena consciência de que, históricamente, a Hierarquia Eclesiástica sempre se aproveitou em demasia da falta de conhecimentos bíblicos da generalidade dos crentes que isso significa que toda a vasta obra histórica da Igreja se resuma a esse aspecto e seja, consequentemente negativa!", mas não sei bem se conseguiste ler tudo, no meio da fumarada, ou se já estás a preparar outra valente salva de morteiros...
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