O diário berlinense que costumo ler, o Tagesspiegel, tem hoje vários artigos sobre o wikileaks.
Traduzo alguns extractos (os links são para o artigo completo, em alemão):
(a tradução é, como habitualmente, do Speedy Gonzalez Araújo)
Hans Monath: "As análises críticas de alguns funcionários da embaixada americana sobre políticos alemães não passam de coscuvilhices sem importância, em comparação com possíveis consequências na política mundial, diz Westerwelle. Ele próprio foi descrito como vaidoso e incompetente. As relações entre a Alemanha e os USA não vão sofrer devido a isto. Mais importante é que estas revelações possam pôr em risco a segurança e a vida de pessoas que vivem em regimes ditatoriais, inclusivamente alemães - ainda segundo Westerwelle, que não mencionou qualquer nome ou país."
Christoph von Marschall: "Cada pessoa pode fazer a comparação: como seria a minha própria vida, se vizinhos, amigos e colegas de trabalho pudessem ler o que em bons e maus momentos pensei sobre eles, mas não disse? Como seria se todos soubessem também o que o meu chefe, o pessoal da empresa ou até os meus vizinhos pensam de mim? E como seria ainda se todos soubessem coisas de mim que eu preferia manter privadas? O ambiente ficaria envenenado. Como é possível continuar a coexistir, nesta situação? Muitos abandonariam o emprego e a cidade para recomeçar a partir do zero noutro sítio.
Este é um recurso de que a política mundial não dispõe.
Tem de continuar a exister neste ambiente envenenado. Não vai com certeza haver uma onda de despedimentos (...) apenas porque qualquer um pode ler o que os políticos mais importantes pensam uns dos outros. Também não vão começar imediatamente guerras (...). Mas em regiões do mundo onde ainda hoje se defende com sangue a honra pessoal e nacional, é possível imaginar que haja atentados. Será que o primeiro ministro do Líbano, Saad Hariri, vai escapar com vida a esta revelação das duras palavras que proferiu sobre o Irão e a Síria? Em 2005, o pai dele foi vítima de um complot sírio.
Estas consequências têm um peso enorme na consideração do argumento de transparência com que wikileaks e os jornais que com eles cooperaram tentam justificar a publicação. É certo que os documentos põem a nu mentiras governamentais, mas menos nos EUA e de um modo geral no Ocidente, onde a imprensa livre dá um grande contributo para o controle, e já tinha noticiado atempadamente muitas destas "revelações". Estes conteúdos são uma ameaça para os regimes ditatoriais: por exemplo, o alcance da corrupção das elites afegãs, com nomes e números; as críticas desdenhosas que os chefes árabes fazem uns sobre os outros, e a prova de que pressionam os EUA - ainda mais que Israel - para atacar o Irão, enquanto mantêm um discurso oficial de solidariedade islâmica e acusam os EUA e Israel de serem os belicosos. Nos seus países os media não têm grandes condições para colocar questões críticas. Apenas a internet permite algum acesso à esfera pública.
Para já, o mundo está de cabeça para baixo: a América envergonhada, e Israel em júbilo, para variar. O jogo duplo de muitas ditaduras foi desmascarado. Vai demorar muito tempo até se criar uma nova estabilidade."
Martin Gehlen e outros: "Para alguns, estas revelações não passam de maledicências. Outros temem que os conteúdos se possam tornar perigosos para muitas pessoas. Uma coisa é certa: a imagem dos diplomatas americanos sofreu graves danos. Para alguns governantes, os despachos desses diplomatas são, no mínimo, embaraçosos. Para os regimes do Próximo e Médio Oriente são particularmente desagradáveis. (...) Washington parece ter um interesse especial nos delegados da ONU. Hillary Clinton pediu aos diplomatas que juntassem informações sobre os altos funcionários dessa organização, desde o secretário-geral, Ban Ki Moon, passando pela directora geral da OMS, Margaret Chan, até aos chefes das missões de Capacetes Azuis. Os diplomatas americanos deviam também espionar os seus colegas das outras nações que têm direito a veto no Conselho de Segurança: Rússia, China, Grã-Bretanha e França. O governo americano pediu senhas para sistemas de comunicação, dados biométricos e números de cartões crédito. Washington também queria saber se Ban conseguia desempenhar bem as suas funções de gestor.
As reacções oficiais a estas revelações foram relativamente reservadas. "Nós conhecemos esses relatórios", disse Farhan Haq, substituto do porta-voz de Ban. Um delegado da ONU que preferiu ficar anónimo comentou que as revelações não eram propriamente uma surpresa. Juntar informações faz parte do trabalho normal de muitos diplomatas. Também os outros Estados usam os seus diplomatas como posto de escuta. É normal haver agentes do MI6 britânico nas respectivas embaixadas. Do mesmo modo, as embaixadas russas são consideradas bureau de ligação para o serviço de informações em Moscovo.
Estas acções secretas para recolha de informações sobre a ONU desrespeitam acordos internacionais, como a Convenção sobre os Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, de 1946. Contudo, os EUA reclamam para si um status especial na relação com a ONU. Certos diplomatas americanos dão a entender que, como membro fundador e pagador mais importante, país anfitrião da sede e com poder de veto no Conselho de Segurança, os EUA se reservam alguns privilégios. Além disso, os americanos olham para a ONU com um certo cepticismo. Alguns políticos temem que essa organização ameace a soberania do país. "Nós criámos a ONU, mas isso não significa automaticamente que gostemos dela", disse um representante de Washington."
E ainda nem cheguei à página três - que é, por inteiro, sobre o wikileaks. Não vou traduzir. O resumo é: "Eles pensavam que estavam a criar um instrumento importante. Um instrumento para revelar secretíssimas informações. Mas o sucesso dividiu os cinco fundadores. Hoje, wikileaks desrespeita os seus próprios princípios de transparência e abertura."
Dá uma ideia de como nasceu e cresceu e como se zangaram todos, dá uma péssima imagem de Assange, que, entre outras coisas, não se preocupou em proteger Manning (o informador), a despeito dos valores fundadores do wikileaks.
4 comentários:
Esse jornal que tu lês é um bocadinho unilateral, nao? :)
PS: Conheço o Marschall, é um doce.
hehehe
As partes que não me interessavam, não traduzi... ;-)
É, é. Mas estou agora a traduzir uma segunda leva, e cantam todos pelo mesmo diapasão.
Talvez estejam a reagir como eu: incomodados pelo abanão que isto tudo está a levar, resmungando "não havia necessidade".
Para mim, o ponto fundamental ainda é este: se nada disto é novidade, porque foi preciso publicar os detalhes?
Usando o exemplo do teu doce: se matarem o Hariri, quem assume a responsabilidade?
Acho indecente que os Serviços de Informações mundiais utilizem informação privada para fins oficiais, seja a pedido de H. Clinton, seja de Putin, ou de Cavaco Silva. Isso é que está errado, não a divulgação desses documentos vergonhosos. Não vamos agora matar o mensageiro por não gostarmos da mensagem!
E se o Hariri for morto, pois os responsáveis serão, para além dos autores materiais e morais do assassínio, os senhores Diplomatas que usaram indecorosamente palavras privadas suas para fabricarem informação oficial de Estado, nunca a "Wikileaks"!
Houvesse ele mais "Wikileaks" e talvez este Mundo não fosse tão imundo...
São coisas diferentes: o que os americanos fazem, e o modo como essa informação é posta a circular. Nem um nem outro estão correctos.
Mas se já sabemos que os americanos (e não só) passam a vida a fazer isto, o que aconteceu esta semana com o wikileaks é algo de muito novo e que vai mudar muita coisa.
Se o Hariri for morto, a culpa também é de quem tornou públicas palavras que ele proferiu na privacidade.
Eu penso que o wikileaks faz o mundo mais imundo, a começar pelos princípios: agora vale tudo? pode-se publicar tudo o que existe? então espera aí, que já vou ver se não tens nenhum truque na cartola, já vou arranjar maneira de publicar a tua declaração de impostos... (não vou nada, claro)
Como seria um mundo em que toda a gente pudesse publicar tudo sobre toda a gente?
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