(o que eu gosto de poder começar um post assim: "mão amiga")
(esta cultura do hedonismo é o que se vê: uma pessoa começa o post como gosta, em vez de o começar como deve ser, ou seja, com a verdade, e sai asneira. A ver se acerto à segunda:)
Coração amigo ofereceu-me o "disse-me um adivinho" do Tiziano Terzani. Tenho andado a lê-lo com muito gosto (e vagar: há três quinze dias que não falo de outra coisa). Recentemente, ao ler o capítulo sobre a sua travessia da China, lembrei-me de um relato que fiz para amigos, há dez anos, quando andei em viagem por essa estranha terra.
Aqui fica ele, em jeito de agradecimento por aquele belo livro (isto é para ti, io!):
Primeiro foi o Joachim. Logo na primeira noite em Pequim saiu, de cachimbo em riste, a tomar o pulso à cidade.
Meteu-se pelas ruelas do hutong vizinho ao hotel, bebeu uma cerveja num bar improvisado na rua e foi à salinha de cabeleireiro lá do sítio.
Regressou ao hotel feliz da vida, contando das duas lavagens (uma antes e outra depois de cortar o cabelo) e da massagem interminável à cabeça.
Claro que resolvi ir também. Sentei-me na cadeira e ela começou a lavar-me o cabelo assim sentada, com algumas gotas de água e de champô, alargando a pouco e pouco a área de actuação. Depois de muitas fosquinhas, levou-me para o lavatório e tirou o champô do cabelo. Depois, quase uma hora de massagens.
Para falar verdade, não gostei. Dava a sensação que me queria fazer buracos no crânio, ou rasgar-me o couro cabeludo com as unhas, coisas assim. Distraía-me observando um grupo de adolescentes do bairro, que estavam lá sentados a observar tudo, mortinhos de riso, e mais uma velhota muito atenta que ia dando instruções à cabeleireira como devia fazer o trabalho bem feito.
Pelo meio, quando me limpou algumas gotas de água da cara, eu murmurei um "sie-sie" tímido e ela desatou a falar chinês toda contente, obviamente aliviada por se sentir compreendida.
Eu expliquei como pude que só sei dizer "olá" e "obrigada", e ela voltou ao silêncio forçado.
Ao fim de quase hora e meia, apresentou-me a conta: cerca de três dólares. Tive vontade de pagar 50, afinal é o que pago por um serviço semelhante na Alemanha, e ela merecia isso, sem dúvida (de onde se conclui que eu gosto de sofrer). Mas fiquei na dúvida - que será que ela ia pensar de uma gorjeta assim?
Esta é uma das coisas de que mais gosto quando viajo: sentir-me despida da segurança que os hábitos dão, e ter de refazer rapidamente a minha "Weltanschauung" e o meu modo de comunicar com os outros.
Paguei (5 dólares), saí, e ela despediu-se: "bye bye". Chatice, estava a contar com esse momento para aprender como é que os chineses se despedem.
Fiquei com vontade de voltar àquele lugar. Não é que seja prático, mas é com certeza fino ter uma cabeleireira preferida em Pequim. E ninguém precisa de saber que é num hutong.
Ah, e a propósito de comunicar: os meus contactos com chineses eram quase sempre terminados com um sie-sie, acompanhado de uma vénia em regra, da cabeça (que inclinava) aos joelhos (que dobrava).
Após regressar a San Francisco, tive de telefonar para a escola dos miúdos e, quando cheguei ao fim do telefonema, agradeci (thank you very much), curvei a cabeça e dobrei os joelhos. Vénia em regra, na sala da minha casa, ao telefone.
Se o Pavlov me apanhasse a jeito, nunca mais quereria saber do cão dele...
1 comentário:
Coração amigo: que belíssima história chinesa! O que tu levas de mundo e de vida, nem eu com vinte vidas. Não tinhas, nem tens por que agradecer: se alguém merecia este Terzani (que é o único que conheço, aguardando que, seguindo o teu repto, a Tinta publique os restantes), esse alguém é a Heleninha. A Araújo. A dos 2 dedos. A.
Beijinho grande e repenicado
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