01 outubro 2010

o exacto nome da coisa


(foto tirada daqui)

Na Alemanha existe desde 2001 uma figura especial para o "casamento homossexual", quase igual à figura jurídica do casamento, e que dá pelo nome de "convivência registada".

O ministro dos negócios estrangeiros, Guido Westerwelle, e o seu companheiro, Michael Mronz, assinaram este registo de convivência com uma discreta cerimónia há duas semanas.
Aquela relação é conhecida há vários anos, e já em 2004 foi referida numa entrevista do Spiegel (aqui, em alemão), de que traduzo uma parte:

Guido Westerwelle, chefe da FDP, sobre o seu outing mudo, os desafios políticos no apoio a casais do mesmo sexo e o futuro da oposição popular

SPIEGEL: Herr Westerwelle, agora toda a Alemanha sabe que o presidente da SPD ama um homem. Sente-se aliviado?

Westerwelle: Talvez eu gaste menos tempo a pensar nisso que você. É que nunca escondi a minha vida, limitei-me a vivê-la sem fazer grandes discursos sobre ela. E tenciono continuar a fazer o mesmo, de futuro.

SPIEGEL: Num curto espaço de tempo apareceu várias vezes com o seu companheiro, Michael Mronz, em eventos públicos: num torneio de equitação em Aachen, numa homenagem ao novo Presidente, Horst Köhler, e no 50º aniversário de Angela Merkel. Pretendeu com isso tornar a sua relação pública?

Westerwelle: Fiz o que muitas pessoas fazem na minha situação: em vez de comparecer sózinho em determinadas ocasiões, fi-lo acompanhado. Não me parece dramático. Afinal, de que se trata?

SPIEGEL: Em todo o caso, de um outing mudo.

Westerwelle: Sou a favor de mais naturalidade no tratamento destas questões. Quero viver a minha vida como o ser humano Guido Westerwelle, também porque só tenho esta vida. Não é um ensaio geral, é a minha vida.

SPIEGEL: E não se preocupou com as consequências políticas?

Westerwelle: Não tenho como mudar isso, se a minha vida agrada ou não às pessoas. Se a minha vida atrai eleitores nas cidades e eventualmente os afasta nos meios rurais. Não sei, nunca o saberemos. Também não posso orientar a minha vida em função disso. Para mim, a minha vida é indiscutível. Vivo-a em consciência e posso dizer que nunca me esquivei.


Gosto daquela afirmação: é a minha vida, não é um ensaio geral.

Mas o que eu queria mesmo contar era isto: no país da Filosofia, do Direito e da língua exacta como uma matemática, dois homens assinam discretamente um "registo de convivência" - e o que é que aparece na primeira página dos jornais? Isto:

Westerwelle e Mronz casaram

14 comentários:

jj.amarante disse...

Nessa cultura da Filossofia, do Direito e da língua exacta como uma matemática também chamaram à antiga Alemanha de Leste "República Democrática Alemã". Acho que não passa da luta normal e constante pelas palavras.

Helena Araújo disse...

Aaah, mas isso foi culpa dos russos. Os mesmos que tinham um jornal chamado "Verdade". (hihihi)

Paulo disse...

Também achei curioso esse título nos jornais portugueses. Pensei: então eles não sabem que na Alemanha dois homens não se casam? É que, sendo quase a mesma coisa, a coisa tem outro nome.

Paulo disse...

Aliás, a Convivência Registada não será comparável à União de Facto? Ou será quase equiparável à figura jurídica do Casamento?

(Pergunto porque não sei mesmo, Helena.)

Helena Araújo disse...

Pois é isso mesmo que eu acho muito engraçado: deram-se ao trabalho de dar nomes diferentes à coisa, e depois vem a vox populi e diz que aqueles dois homens casaram.
Pelos vistos há certos problemas que não chegam a ser problemas na vida real.

Helena Araújo disse...

Quanto à pergunta:
- Aqui podes ver as semelhanças:
http://www.internetratgeber-recht.de/Familienrecht/frameset.htm?http://www.internetratgeber-recht.de/Familienrecht/Eheschliessung/eheschliessung_4.htm

Parece que há grandes semelhanças, mas ainda estão por fazer alguns ajustamentos a nível de direito fiscal e de segurança social. E não podem adoptar como casal, só um deles (com o consentimento do parceiro).

Paulo disse...

Obrigado. Convém uma pessoa estar informada.

Helena Araújo disse...

Ah, estive a comparar a Convivência Registada com o Casamento.
Quanto à União de Facto: não encontrei grande coisa. Parece-me que essa figura não é muito importante do ponto de vista jurídico.
Tens aqui um estudo jurídico sobre as diferenças, mas não sei quando foi feito:
http://bgb.jura.uni-hamburg.de/agl/agl-nichtehel-lgem.htm

Em todo o caso: parece-me que o legislador só se preocupou em proteger os interesses dos filhos dos casais em união de facto. Quanto aos membros do casal, entende-se que se querem ter os seus interesses protegidos só têm de casar.

Pelo mesmo motivo se fez a Convivência Registada tão semelhante ao casamento: porque os homossexuais não tinham essa liberdade de casar.

Paulo disse...

Obrigado. És um anjo. Já tenho matéria com que me entreter.

Voltando ao Senhor Westerwelle, também gosto de quando ele diz: Também não posso orientar a minha vida em função disso. Para mim, a minha vida é indiscutível.

io disse...

Estou contigo: fiquei literalmente reendida com aquela resposta: é a minha vida, não é um ensaio geral. Algo que de há um ano a esta parte tento empenhadamente não me olvidar, mas que ainda não tinha encontrado sintetisado com tanta veemência.

Helena Araújo disse...

Paulo,
é tão elementar, que uma pessoa até se pergunta porque é que é preciso dizer.

Helena Araújo disse...

Rita,
obrigada pelo teu e-mail privado, onde me avisas que não é SPD, é FDP.
Os liberais. Vou já trocar no texto.
(espero que o Freud, ou lá quem é que explica estas coisas, esteja a dormir)

Helena Araújo disse...

io,
pois.
O Kundera já andou a falar disso na Insustentável Leveza, mas dizia o contrário: a nossa vida não sai do ensaio geral. A gente faz o esquisso sem oportunidade de passar a limpo.
Também gosto de ver por esse lado.
Ah, olha: acabei de escrever o post de hoje. :-)

Rita Maria disse...

E eu tao discretinha...(Westerwave 1 - Kundera 0. Já estou a imaginar a minha impaciência se me mandassem viver tudo outra vez. Fazia de certeza diferente só para me poupar à monotonia, mas eram uns erros novos, nao a correcçao dos passados).