22 junho 2010

Galileu ensinado a miúdos de 13 anos

Amanhã temos de entregar na escola o livro de História do Matthias do 7º e 8º ano, para ser vendido aos alunos mais novos. Alguns pais organizam estas vendas na escola, e é um autêntico negócio win-win.
Folheei o livro para ver se estava tudo em ordem, e parei na página do Galileu:


"E contudo move-se"

Como Copérnico, também Galileu etc. telescópio mais potente etc. sistema heliocêntrico, publicação em 1610, discussões.

Na peça de teatro "Vida de Galileu", de Bertolt Brecht (1898-1956), diz um monge a Galileu:
... Eu sou filho de um lavrador e cresci na Campagna. São pessoas simples. Sabem tudo sobre oliveiras, mas do resto pouco sabem ...
Asseguraram-lhes que o olho divino paira sobre eles, ... que o grande teatro do universo se arma à sua volta, para que eles ... se possam sentir confirmados.
O que diria a minha gente se eu lhes contasse que se encontram num torrão de pedra que, sem parar de girar, anda no espaço vazio à volta de outro corpo celeste?
Para que serve então a Sagrada Escritura, que tudo explica ... e da qual se dirá agora que está cheia de erros ...

7. Observa atentamente a figura. Com que palavras poderia Galileu ter elogiado o seu telescópio?
8. Com a ajuda do texto de Brecht, descreve que angústias podem ter surgido nas pessoas devido às afirmações de Galileu.
9. Escreve a resposta que Galileu poderia ter dado ao monge.

Em 1633 julgamento etc., prisão domiciliária etc.
Em 1992, o Papa João Paulo II afirmou que Galileu revelou mais visão que os seus adversários teólogos.

10. Prepara uma carta ao tribunal eclesiástico na qual defendes a posição de Galileu.

***

Eu quero voltar à escola! Eu não vou vender este livro! Na próxima quinta-feira vou à escola do meu filho e compro todos os desta série!

(que diferença em relação aos livros pelos quais eu própria estudei História)

18 comentários:

Gi disse...

E muito diferente, parece, dos livros pelos quais se estuda em Portugal (isto é ouvir-dizer, porque não os conheço).
Muito bom, Helena, fico contente pelo Matthias.

Júlio de Matos disse...

Opinião superficial, mas inquieta: parece-me algo excessiva a intrusão de Brecht numa lição de História renascentista... Não bastaria a referência aos factos históricos, sem provocar a "doutrinação" ateísta dos Alunos? Que sentido faz misturar dados científicos com crenças religiosas no ensino da História do 8º Ano? Incredulidades de um agnóstico...

Helena Araújo disse...

Independentemente de quem o escreveu, aquele texto descreve muito bem os problemas que se colocavam às crenças religiosas do Renascimento. Isto não é Brecht contra Ciência, é uma síntese muito bem feita por Brecht em vez de outra síntese muito bem feita, mas pelo professor.
Como explicaria o Júlio de Matos melhor os problemas que a descoberta de Galileu provocou à mundividência do seu tempo?

Rita Maria disse...

Acho o exemplo muitíssimo bom. E Brecht perfeito nesse contexto (porque se há-de ter medo de confrontar crianças com os clássicos? Achamos que são burrinhos ou transferimos o nosso medo dos clássicos, para garantir que cresçam logo com ele?).

De que outra forma se pode aprender história que não através do exercício de "empatia" de se por no papel dos outros e do exercício crítico de pensar que outras hipóteses, que outras reacções teriam sido possíveis? O meu professor de História alemão chamava-lhe "geschichtliches Denken" e punha nos exames perguntas como "porque não eclodiu a guerra fria" ou "x podia ter sido evitado?".

Para um update mais recente de como estão as coisas em PortugaL: Depois quando fizemos os exames de preparação para os exames nacionais com uma professora portuguesa ela ficou chocadíssima porque não sabíamos fazer análises e queria saber se as nossas aulas de História eram só decorar factos. O que aconteceu? Ela fazia umas perguntas razoavelmente abertas de desenvolvimento, mas que tinham uma matriz de correcção bastante cerrada, como aliás os próprios exames nacionais. Ter boas notas é entao o resultado de descodificar na pergunta (que, repito, era bastante aberta) para onde dirigir o desenvolvimento. Outras hipóteses, por mais válidas que fossem, não serviam (e não servem, que isto não mudou) Por outro lado, assim é possível que se tire 20 a exames de Sociologia e que metade do exame seja de escolha múltipla.

No livro de História da minha irmã Vitória, na altura doze anos, o Estado de Direito foi uma coisa que os romanos inventaram para as coisas serem mais eficazes (juro!). Isto é uma enorme falta de respeito pelo intelecto das crianças, pelo Estado de Direito e, por último, pela verdade. Tudo isto de uma penada e só para resolver o facto de tomarmos criança por sinónimo de burro e educação por sinónimo de...hmm...ok, nem me ocorre nada.

Rita Maria disse...

PS: Helena, o meu sonho era esquecer o doutoramento e voltar ao Gymnasium, sempre com muitas disciplinas, em que simplesmente continuássemos a progredir em termos de complexidade, mas sem nunca nos especializar-mos numa determinada área (deve ser por isso que nao estou aqui a escrever candidaturas de doutoramento). Se descobrires uma, com livros desses do Matthias, diz-me logo, que podemos ser colegas de carteira.

Ant.º das Neves Castanho disse...

Helena, não sei se não seria melhor ensinar às crianças do 8º Ano que a Ciência começou por esta altura histórica a criar sérios problemas à Escolástica e a uma interpretação literal da Bíblia, que então era a única que a Igreja conhecia, sem se chegar ao ponto de ridicularizar e caricaturar, com base na mundividência contemporânea, a Hierarquia da Igreja de então pela sua ignorância científica, que na altura era comum aos próprios "cientistas". Poderia talvez enfatizar-se que a posição da Inquisição, se bem que inaceitável à luz dos nossos princípios actuais, na altura se fundamentava tanto em bases canónicas, como no conhecimento "científico" da época (nem todos os cientistas acompanhavam Galileu nas suas teses, não eram generalizadamente aceites, no meio "científico" de então, e isso tem a sua importância). Mas nada disto é simples e, acima de tudo, o que eu pretendia questionar (nem sequer criticar...) era não a utilização de um texto de um "clássico" da Literatura alemã, mas a sua adequação ao nível do 8º Ano (talvez no Secundário fosse já naturalíssimo), que me parece algo abusivo e de cariz doutrinário.



Nada disto significa que eu ache as crianças "burrinhas" (ai Rita Maria, e a distinção entre pouca inteligência e pouco conhecimento?), nem que se deva incutir-lhe logo de pequeninas o medo, ou até o ódio, a certos clássicos, nada disso. Mas nem 8, nem 80.


Nada sei de como é agora em Portugal (brevemente saberei...), mas sei que as questões Ciência-Religião são de sempre e estudam-se no âmbito da Filosofia. Tive no Técnico um extraordinário e inesquecível Professor, desses assuntos (a Cadeira era História e Filosofia das Ciências), que era Cientista e Padre (João Resina). Muito aprendi (também a questionar...) com as suas soberbas aulas teóricas.



Mas também me parece fascinante esse conceito de "Raciocínio historicista" do Professor da Rita Maria. Eu próprio sonho escrever um dia sobre isso a partir de uma casualidade factual: o que teria sido o Futuro se a bomba que em Julho de 44 partiu as pernas à mesa tivesse também "partido" a aorta ao Hitler? Nem sei se não haverá por aí algum escrito sobre essa fascinante especulação (agradeço penhoradamente ajuda neste domínio...). A Alemanha rendia-se sem destruição total? A Prússia e a Europa de Leste não eram ocupadas pelo Exército Vermelho? Muitas vidas (sobretudo de Judeus) teriam sido poupadas? NÃO TERIA EXISTIDO O ESTADO DE ISRAEL, nem teria sido utilizada a bomba atómica?


Já agora, ainda para a Rita Maria, ouvi recentemente falar de uma nova Licenciatura em Estudos Gerais, na Fac. de Letras da Univ. de Lisboa. Para quem quer saber um pouco menos do que os especialistas, mas sobre muito mais assuntos, em vez de saber cada vez mais sobre cada vez menos.

Ant.º das Neves Castanho disse...

Síntese feita por Brecht mas para adultos. Em vez de outra síntese feita "apenas" pelo Professor, mas adequada à faixa etária do 8º Ano, não?


Júlio de Matos.

Rita Maria disse...

Há uma diferença entre pensar com a História e o pensamento histórico de que falava o meu professor (e do qual a pergunta "o que teria acontecido se" é só um exemplo) e o "pensamento historicista" com que o traduz. O dele era um pensar com a História, nao um pensar apesar da História.

Nao vejo na citaçao de Brecht nenhuma doutrinaçao ateísta e tenho a certeza de que a Helena lhe seria mais sensível do que eu.O monge, nesta citaçao, nao personifica a elite intelectual da igreja católica, pretende ser um resumo do significado maior dessa descoberta, explicar o que poderia ela significar para a generalidade da populaçao da altura. E isto torna a descoberta relevante e torna este momento compreensível e com isso "apreendível" e nao só "decorável".

Ao contrário do que acusa, justamente nao confundo nunca parcos conhecimentos (mesmo estes discutíveis) com falta de inteligência. Acho que se pode explicar quase tudo a uma criança do oitavo ano (curiosamento o nono ano é aliás o "standard jornalístico") e acho que a mesma criança sabe, se lhe derem as ferramentas adequadas, ler ficçao e dar o desconto.

Claro que depois existem perspectivas diferentes, nomeadamente a da Igreja e a que justifica o posicionamento da Igreja, e eu concordo que sejam relevantes. Mas, se o que estamos a discutir é uma perspectiva crítica e equilibrada, é também importante perceber aquilo que era legítimo e compreensível à luz da economia de conhecimento da Igreja e aquilo que deve ser lido a partir das relaçoes de poder dessa mesma Igreja nessa mesma sociedade(em veráculo, nao chegam as "desculpas", é preciso observar o todo).

Fazer de conta que se pode explicar tudo à luz de questoes canónicas e do estado da ciência na altura como se as relaçoes de poder subjacentes a toda uma realidade social nao existissem seria também doutrinaçao.

(essa licenciatura seria genial. Mas, sendo na Faculdade de Letras, inclui também as ciências?)

Helena Araújo disse...

Aluno do Padre Resina?
Mas que inveja!
Aqui não há, infelizmente, Filosofia. Excepto como disciplina facultativa, ou extra-curricular. As questões filosóficas são tratadas também nas outras disciplinas (outro dia a professora de Biologia da minha filha esteve a falar em racismo...), e em Ética.

Eu continuo a achar a síntese de Brecht perfeitamente adequada àquela idade (daqui a uns meses estarão a estudar "Nathan, o sábio" - peça bem mais complicada que esta de Brecht). E não ridiculariza a Hierarquia da Igreja Católica. Até achei interessante o comentário final - este feito já pelo autor do livro - sobre um Papa do nosso tempo se ter dado ao trabalho de fazer justiça a Galileu.

O que me agrada imenso nesta maneira de ensinar História é o esforço de levar os alunos a imaginar aquele tempo, em vez de lhes dar simplesmente os factos para eles digerirem e reproduzirem. Em termos de Pedagogia, acho muito interessante.

Helena Araújo disse...

Ó Rita,

"relações de poder subjacentes"?
Isso é só para a Universidade...
(e nos cursos dos comunistas, claro)

;-)

(às vezes penso que devia ter estudado História em vez de Economia)
(se calhar ainda vou a tempo?)
(ou espero mais um bocadinho, e vou para uma universidade da terceira idade?) (já falta pouco)

Rita Maria disse...

Nao, anda comigo para o Estudos Gerais (já fui lá ver o currículo, tem História, Física, Matemática, Arte, tudo! se calhar até tem bolas de berlim da cantina e linguados na Raucherecke...)

Ant.º das Neves Castanho disse...

O quê? Não há Filosofia (no Ensino Básico) no País de Kant, de Heiddegger, de Hegel, de Wittgenstein (parece que sei eu muito de Filosofia...), enfim, do grande Etc.?!!


Bom, também se diz de Portugal que "não há Justiça, na terra da Cortiça"...

Ant.º das Neves Castanho disse...

E talvez tenham ambas razão quanto ao Brecht. Não dá para discutir este assunto pela rama...


E também eu gostaria de ter tempo para um dia chegar a Doutor, se possível, em Estudos Gerais...

Helena Araújo disse...

Já somos três a ir para os Estudos Gerais!
(mas eu, na parte da Física, copio pela Rita)

E é verdade, não têm uma disciplina de Filosofia. Se calhar acham que isto nos alemães é genético, não é preciso chover no molhado.
;-)

(Mas obrigam-nos a pensar imenso. Não é: "hoje vamos dar Kant", é mais "o que pensam de...?")

Rita Maria disse...

Essa parte passou-me: a escola do Matthias não tem filosofia? Nem na Oberstufe? Isso não é normal, eu tinha (também conheço escolas que têm ética, mas não substitui, de forma nenhuma)

Rita Maria disse...

PS: Eu era muito boa a Física. Quando comecei no oitavo ano tinha 1 e quando acabei antes do Abitur também tive 1. O único problema é que a escola tinha passado de 1-6 a 1-15.
PPS: Mas sei que o Wittgenstein era austríaco ;)

Helena Araújo disse...

Isto já vai em tantos comentários que até parece que estamos a falar de Bimbys...
É, as escolas não têm Filosofia. O Matthias diz que a professora de Ética falou de Sócrates. Mas em Ética aprendem também as religiões, tem uma componente de Educação Sexual, etc.
E a Christina, que está a entrar na Oberstufe, diz que no máximo pode ter Filosofia como disciplina extra-curricular (=AG) no próximo ano.
De facto, nunca entendi.
Brinco dizendo que não é preciso porque é genético, mas acho estranho.
Também estão a cortar a música e o desporto. Em compensação, o que a Christina aprende em biologia no 10º ano é equiparável ao que se estuda na universidade. Quem os entenda...

Quanto às notas: :-)

Quanto ao que sabes sobre Wittgenstein: eu sei o que é "austríaco", agora Wittgenstein...
(se percebo metade da frase, será que chega para um "suficiente"?)
;-)

Ant.º das Neves Castanho disse...

Bem, mas se não há Filosofia e estão a cortar na Música e na Educação Física, fico muito contente: assim já pouco faltará para o Ensino em Portugal ser como o da Alemanha!


Mas olha que nós por cá também acreditamos na Genética e, por isso, dispensamos cada vez mais o ensino das boas maneiras...