O José Bandeira teve a amabilidade de nomear este estaminé "blogue da semana" no Delito de Opinião. Estou que nem sei que diga. Bem puxo pela memória, mas não me lembro de ele me dever dinheiro nem nada.
Coitados dos leitores do Delito de Opinião. Chegam aqui, lêem, e põem cara de "será que o José Bandeira deve dinheiro à Helena?"
De modo que prometi lá que ia meter água aqui, para o caso de virem a este blogue debalde.
Para isso, repesco do fundo dos arquivos um delírio de uma noite de Inverno.
Ó, assim:
(senhoras: não leiam)
(cavalheiros: isto não fui eu propriamente dita, isto foi uma coisa que me aconteceu)
20.11.05
palavrões de sobra
Como é fim-de-semana, não há sol, não li o texto do MST e não me apetece falar sobre o caso das alunas do liceu de Gaia, e ainda por cima estou com um ataque de nostalgia, resolvo dar um gosto ao Mr.Hide que há em mim e contar que vivi quase 20 anos no Porto, onde tive oportunidade de aprender alguns dos muitos registos da ordinarice.
(Atenção: Ainda vão a tempo de parar por aqui!)
É todo um universo de alegorias e coloridos, uma espécie de dialecto bem-disposto, que permite
sínteses formidáveis
(como a do professor da faculdade de arquitectura do Porto que manda os alunos desenharem "com os tomates em cima do estirador")
insultos divertidos
(como a miúda da Ribeira, gritando ao rapazinho que se afasta amuado: "Olha, vai pela sombra! Ouviste? Vai pela sombra, que a merda ao sol seca!")
e até novos recursos para a luta de classes
(como esta cena a que assisti no Bolhão:
Cliente (uma senhora fina): A como são as rosas?
Vendedora: A 100 escudos.
Cliente: A dúzia?
Vendedora (muito alto, muito escandalizada): A dúzia?! A dúzia de rosas a 100 escudos?! A mulher está mas é maluca! Deve ser tarada sexual!!!)
O Porto é uma nação, já se sabe, mas eu fiz a pós-graduação do dialecto aos fins-de-semana, quando ia para a casa da avó, numa aldeia minhota.
É um mundo curioso, onde palavras como estrume ou porco são consideradas grosseiras, enquanto que aquelas que o resto do país considera palavrão são usadas com toda a naturalidade.
Foi lá que ouvi delícias do género: "fui buscar um carro de, com licença, estrume, mas a puta da roda partiu-se, a porra da carga espalhou-se na estrada e eu fodi-me todo."
A minha avó tinha uma empregada, a Ana, uma mulher muito bonita e de uma alegria contagiante, que pontuava as frases com palavrões espantosos - acho que até as vacas que ela mungia ("Chiça, hoje tens leite como um caralho!") coravam e ruminavam um muuuuh de desaprovação.
A vizinhança murmurava ("Ela até à frente da patroa fala assim!"), mas os meus irmãos e eu gostávamos imenso de andar de volta dela a aprender para a vida.
A Ana casou, e alguns anos depois fui visitá-la. Continuava bem-disposta e expansiva. Mostrou-me o filho, de ano e meio, gabou-o: "este rapaz é que é fino, fosca-se, olhe-me só para isto",
virou-se para ele, aos berros: "ó meu filho da puta, se te apanho fodo-te os cornos!"
e ele desatou a fugir com as perninhas muito rápidas, soltando gritos alegres
e ela corria atrás dele, insultava-o, ameaçava-o
e depois virou-se para mim: "Está a ver como o raio do rapaz é esperto? Fino como um caralho!"
Do fundo do corredor, o rapazito olhava para ela com os olhos muito brilhantes, ria-se, pedia mais.
A quem estiver interessado em conhecer este vernáculo, recomendo o camião da feira.
Espero que ainda exista: é um camião de carga onde, às quintas-feiras, instalam bancos precários sob a armação de lona, para levar pessoas para a feira de Barcelos. À ida, não há problema. As pessoas repartem-se pelas várias carreiras, vão ainda sonolentas, talvez a fazer contas de cabeça ao que querem comprar. À volta, é um sarilho: querem regressar todos no mesmo camião, atafulham o compartimento com dornas, masseiras, arados, ancinhos, sacos de milho, galinhas e leitões vivos, ajeitam-se como podem pelo espaço que sobra. Vêm bem-dispostos, comparam preços, contam anedotas e histórias das respectivas terras.
Foi num desses camiões que aprendi o meu chorrilho de antologia.
Vínhamos de regresso, todos eles muito faladores e eu muito calada a saborear aquela algazarra alegre, quando o camião parou para deixar sair uma passageira. Foi uma confusão, porque ela estava no fundo do compartimento e não tinha praticamente espaço nenhum para passar, mas com jeitinho e a ajuda de todos lá conseguiu passar sem estragar as mercadorias alheias, lá conseguiu descer do camião, juntar as suas compras, "e olhe aqui este saco, não se esqueça de o levar", "ah, muito obrigada, querem lá ver que me esquecia mesmo". Foi-se embora, o camião arrancou, e quando já íamos na aldeia seguinte uma mulher solta um grito:
"Ai! O caralho foda a merda, que a puta da mulher levou as minhas sardinhas!!!"
12 comentários:
Nem sei que te escreva, estou estupefacta: acabo de descobrir que as peixeiras da minha bela terra são meninas de coro.:-DDDDDDDDDDD
PS: não páro de rir.
PS: estou a chorar a rir. :-DDDDD
(Fui eu quem lhe disse, melhére, descendo as escadas, que TINHA de ler este post, visteS? - Perseu)
:-)
:-)
:-)
em boa hora vim aqui a este 2 dedos de conversa através do Delito...
das prosas mais hilariantes que tenho lido nos últimos anos...
a nossa língua é um espanto...
felicitações pela forma como a trata.
abs
Isso é batota, mas como o texto é tao bom...
PS: O meu problema com os palavroes nao se aplica ao Minho. Acho que a questao é que quando um lisboeta diz "F***-se" ele está zangado, agressivo e quer mesmo juntar carícias entre esposis e um insulto na mesma frase. Já no Minho se dissermos "Foda-se, há quanto tempo nao te vejo, meu grande filho da puta!" há todo um colorido e uma ternura (nem é preciso estrelinhas!). Por isso dizemos depois desculpa quando queremos mesmo dizer as coisas que designamos, desculpe, estrume, perdao, prostituta.
Não vim debalde, levo balde cheio de riso.
LOL
melhor (pior) que isso só em trás os montes. :P A sério. Só me dá vontade de rir.
Olhem que eu agora vou dizer como o outro:
"agarrem-me, que eu incho!"
(Obrigada!)
Um Mr. Hide delicioso :-)
Por mim pode continuar a inchar, Helena: atrasada como sempre, mas cá cheguei. E não me vou daqui embora, como diria o Vitorino, sem levar uma data de prendas suas.
Parabéns!
:-)
E eis-me aqui, um ano depois, a rir com uma vontade que nem imaginas. Logo eu, que me custa tanto começar a rir. Lindo, lindo! Quero mais! :-)
Enviar um comentário