28 junho 2010
Canyon de Chelly
O nome deste canyon e a sua pronúncia (də·shā′) são um bom reflexo da história conturbada das culturas que aqui se sucederam e combateram. Os diné chamam-lhe „Tséyi’“, desfiladeiro - literalmente: dentro das rochas. Os espanhóis optaram por escrever "de Chelly". Os americanos leram o nome, e acharam que era francês. Em suma: para pronunciar "de Chelly" segundo o uso actual, basta imaginar um americano a tentar falar francês - é mais ou menos por aí.
O nosso primeiro contacto com a paisagem de Canyon de Chelly foi o mais difícil: o miradouro de Massacre Cave, no North Rim. A paisagem é deslumbrante, mas é impossível ignorar a cena que no inverno de 1805 ali se desenrolou: fugindo a uma expedição militar espanhola, que vinha retaliar um ataque navajo, um grupo de famílias refugiou-se numa reentrância da falésia. Os soldados descobriram o seu esconderijo, vieram para o ponto da orla do desfiladeiro onde existe hoje o miradouro, e começaram a disparar para os navajos completamente expostos, matando 115 pessoas. Ainda hoje se podem ver as marcas das balas na parede de pedra. Os sobreviventes foram feitos escravos. Muitos navajos daquela época foram obrigados a trabalhar em condições desumanas nas minas de prata mexicanas.
É verdade que também os navajos raptavam pessoas de tribos inimigas para as escravizar e até vender - os pobres paiutes, mais ao norte, que atravessavam o Inverno em estado de semi-hibernação porque quase não tinham o que comer, eram raptados no início da Primavera, época em que estavam tão debilitados que não se conseguiam defender; seguia-se um tratamento de engorda, e o trabalho forçado nos campos dos navajos, ou a venda. Os espanhóis não estavam a inventar nada de muito novo quando escravizavam os navajos - mas, convenhamos: ladrão que rouba ladrão, não deixa de ser ladrão.
Um pouco mais à frente, fica um dos melhores miradouros, de onde se pode ver o grande complexo de Mummy Cave - assim chamado porque se encontraram lá duas múmias. Esta povoação, abrigada sob a massa monumental do paredão, foi habitada continuamente durante mil anos, de 300 a 1300. O conjunto arquitectónico mais recente foi construído por volta de 1280 por pessoas provenientes de Mesa Verde.
Mais dois miradouros (Antelope House e Ledge Ruin), e chegámos a Chinle. Fomos imediatamente ao centro de informações marcar uma visita guiada, dado que, à excepção do White House Trail, a entrada no canyon só é permitida a pessoas acompanhadas por um ranger ou guia navajo autorizado.
Em seguida fomos à procura de um hotel que nos confortasse os ossos e limpasse da alma o desconsolo que foi a experiência do campismo em Chaco. Encontrar um hotel em Chinle não é difícil: só há três. Optámos pelo Holiday Inn, que tem uma pequena piscina ao ar livre. Ah, poder tomar um duche! Ah, poder lavar a louça na casa de banho sem letreiros a dizer "arreda"!
Os miúdos desapareceram para os lados da piscina, e nós fomos explorar o hotel, e verificar a hora dos nossos relógios. É que a reserva navajo adopta o horário de Verão, ao contrário da prática no Arizona e nas regiões dos hopi. Em viagem por aquela área, o turista desprevenido nunca sabe a quantas anda. Um fenómeno que tem ocupado bastante a ciência, e foi magistralmente explicado por Einstein: tempo e espaço estão interligados.
À hora certa (confirmámos várias vezes) para a visita guiada, dirigimo-nos de novo ao centro de informações. A guia, uma navajo sem trança e com ar muito simpático, já estava à nossa espera. Na caixa, perguntaram-nos se tínhamos um veículo com high clearance. Temos um SUV, dissemos nós, todos ufanos, porque o tínhamos alugado propositadamente para as estradas de Chelly e Chaco. Mas tem high clearance?, insistiram eles. Bem, é um SUV..., retorquimos hesitantes. Um SUV com high clearance? - pareciam obcecados. Não sabemos..., respondemos nós, e era verdade: não sabíamos o que é que eles queriam dizer exactamente com aquela expressão.
Impaciente, a guia afirmou que sim, que a nossa high clearance era suficiente, e entrámos no canyon. Percebemos logo o motivo da obsessão: os caminhos são arenosos, e em alguns pontos têm sulcos profundos. Em parte, anda-se no leito seco dos aluviões. O Joachim precisou de toda a sua habilidade (e é muita) para conseguir fazer avançar o SUV naquele terreno sem deixar lá o pára-choques.
Durante as quatro horas que a visita demorou, a guia foi incansável a explicar o que víamos e a responder às nossas perguntas.
Logo no início apontou a bela mancha verde que se estende ao longo do rio e se tornou uma imagem distintiva de Chelly: uma catástrofe ecológica, disse ela. Estas árvores - tamarisco e oliveira-do-paraíso - não são naturais daqui. Foram introduzidas artificialmente, são invasivas, esgotam a nossa água e destroem a nossa biodiversidade. Começaram a ser arrancadas, mas a substituição de espécies é um processo caro, e tem de ser feito com muito cuidado, para evitar um aceleramento da erosão.
Um camião de caixa aberta com bancos corridos passou por nós, levantando uma nuvem de poeira. Os turistas, fortemente sacudidos pelo terreno irregular, acenaram na nossa direcção. A nossa guia soltou uma gargalhada:
- Ali vai um camião do "shake and bake tours"...
Mais à frente, os primeiros petróglifos. O canyon é habitado há quase 5000 anos. Ao longo desse tempo, os diferentes habitantes foram inscrevendo na pedra os seus símbolos religiosos e históricos. Não se conhece o significado de muitos deles.
- Aquela cruz ali, estão a ver? Pode ser um símbolo das quatro direcções dos diné, ou então das quatro montanhas sagradas que marcam os limites dos nossos territórios, ou talvez até das migrações periódicas: os povos iam para leste, e regressavam; para oeste, e regressavam; para sul e para norte, e regressavam.
Outros conjuntos de imagens são extraordinariamente fáceis de entender. Como esta de cavalos, cavaleiros com chapéus, um padre. Pensa-se que descreve a expedição de Antonio Narbona, que terminou com a tragédia de Massacre Cave.
- Ali, aquela cabeça de cavalo, é mais recente. Talvez tenha sido feita por um inglês. E a parede branca da White House Ruin está cheia de inscrições, várias delas datadas de fins do séc.XIX.
- Apesar de tudo, tiveram sorte - comentámos nós. Junto ao rio San Juan vimos uma parede enorme coberta com símbolos dos anasazi, onde alguém escreveu "fuck!" com tinta de spray. Milhares de anos de cultura profanados por alguém cuja inteligência não permite ir mais longe que uma ordinarice pintada à pressa na rocha.
- Também temos tido esse problema neste canyon. Há muito grafitti. Alguns jovens pensam que são engraçados, e não fazem ideia do erro que estão a cometer. Temos aumentado a vigilância, e vamos removendo na medida do possível.
Na povoação seguinte, um grande choque, ao ver na pedra, por trás das casas, uma cruz suástica branca (clicar na fotografia para ver melhor). Graffiti de neonazis em Canyon de Chelly?
A guia ri-se:
- Todos os alemães que vêem isto ficam incomodados, mas não é nada disso. Provavelmente é um símbolo das migrações segundo os pontos cardeais.
Nova etapa, nova paragem. Desta vez, para ver as pulseiras e os colares que a nossa guia faz ao serão, e que o marido está a vender junto a uma carrinha - essa sim, de high clearance. Ora aqui está uma família com apurado sentido empresarial.
A Christina e eu procurámos brincos de prata e turquesa como os da navajo de Chaco, mas não tinha nada do género. Apenas pulseiras e colares com lindas combinações de pedras. Mal sabíamos nós que a cada pedra é atribuído um poder diferente. O que para nós são combinações de cores, para os navajos tem significados profundos. A turquesa, por exemplo, é uma pedra sagrada, capaz de aumentar a fertilidade dos rebanhos, de conduzir à vitória numa batalha, de assegurar boas caçadas, e de proteger o seu portador contra azares diversos, nomeadamente ser colhido por um raio ou mordido por uma cobra. De modo que comprámos várias pulseiras muito poderosas e carregadas de significados, que tragicamente se esvaziaram ao chegar à Europa, porque perdemos o folheto que explicava tudo. Razão têm os antigos, quando afirmam que a passagem da tradição oral à escrita é o princípio do fim.
A guia continuou a contar. De quando os espanhóis chegaram "e ficaram cheios de inveja dos nossos pomares e campos viçosos", e capturaram centenas de diné para os obrigarem a fazer agricultura assim bonita noutros lugares. De quando os ingleses chegaram, lhes destruíram campos e árvores de fruto, os perseguiram sem piedade. Do seu bisavô, que sobreviveu à grande marcha forçada: 300 milhas até Fort Summer, 300 milhas para o regresso quatro anos mais tarde, quando os americanos se deram conta de que afinal aqueles territórios não eram tão ricos em recursos naturais, e que a ideia de concentrar na mesma área tribos tradicionalmente inimigas não tinha sido brilhante: como se concluiu sarcasticamente na época, teria ficado mais barato metê-los em hotéis em Nova Iorque...
Junto a um conjunto de ruínas, lembrei o que o ranger de Mesa Verde nos contou: os navajos não deixam os seus filhos visitar aqueles locais, por temor aos espíritos dos que lá viveram. Ela fitou-me, pensativa:
- Na noite do 4 de Julho passado fui com as minhas amigas ao miradouro de Massacre Cave. Podíamos ouvir distintamente os gritos e o choro das crianças. A gente do meu povo não gosta de chegar muito perto destes locais, porque a morte é contagiosa.
O canyon é habitado, e é até possível pernoitar num hogan alugado, ou acampar no terreno de uma família. Pede-se aos turistas que respeitem a privacidade dos habitantes, e não fotografem pessoas, animais domésticos ou hogans sem antes pedir autorização.
A família da guia mora ao fundo do Canyon de Muerto, mas ela tem uma casa em Chinle. A sociedade é matriarcal: o património familiar passa de mulher para mulher. Esses bens não são possuídos, mas administrados em função do bem de todos: à sua detentora cabe garantir a todos os membros da família alojamento e meios de subsistência. A família é alargada, e a "herdeira" é a mulher mais velha da geração subsequente, escolhida entre as filhas e as sobrinhas. Após o casamento, os homens mudam-se para a família da mulher. Daí a importância das kivas, acrescenta: os homens precisam de um refúgio só para eles.
- Então as kivas não eram compartimentos multi-usos para toda a população, como nos disseram em Mesa Verde?
- Não. Só para os homens. - diz ela, com um ligeiro sorriso irónico.
Depois fala das tradições e da modernidade. É católica, mas continua a respeitar os ritos e as crenças do seu povo. Conforme a doença, decide se vai ao médico ou ao medicine man. Recorre à medicina natural. Após uma pequena hesitação, aponta-nos um arbusto com frutos verdes, semelhantes a tomates: "Aquele fruto ali - vêem? - é um excelente analgésico. O problema é que pode viciar. Temos problemas graves de toxicodependência por causa desta planta". Os nossos filhos observam a planta, subitamente muito interessados. Esta atracção pelo abismo...
É muito difícil criar os filhos no ponto de intersecção das sociedades americana e diné. São permanentemente obrigados a escolher um rumo para a evolução da sua cultura de origem. As crianças aprendem inglês e a língua dos antepassados, mas muitas preferem falar inglês.
- E como encontram palavras para descrever algo novo, como avião ou computador? Usam as palavras inglesas?
- Não. Procuramos criar significados novos a partir das palavras de que dispomos... - e eu a pensar: ai que engraçado, a "loi Toubon" chegou tão longe? - ...Por exemplo: para televisão, dizemos "imagens que vêm pelo ar". Ontem, para dizer à minha mãe que comprámos um computador, tive de dizer assim: "imagens que vêm pelo ar e máquina de escrever".
Entretanto tínhamos chegado à nossa última etapa. A White House Ruin, com a sua parede branca para, segundo se pensa, reflectir a luz para as casas em torno.
Que estranha fé levaria aquela gente a construir casas sob maciços rochosos tão imponentes e intimidantes?
Esta é a mesma casa que (quase não) se vê na primeira fotografia deste post, e que foi feita do miradouro na orla do canyon.
Despedimo-nos da guia e regressamos ao hotel. Nesse dia celebrávamos o aniversário do nosso casamento, e decidimos festejá-lo no restaurante, com um bom bife que nos tirasse a barriga de misérias, depois de tantas sopas biológicas de pacote e do eterno esparguete com molho de tomate. E bem regado com um daqueles vinhos californianos tecnicamente perfeitos (isto não é um elogio).
Carne, havia, e era muito boa. Também havia enchiladas deliciosas. Quanto ao vinho... azar o nosso: o álcool é proibido nas reservas navajo. Por curiosidade, encomendámos um vinho sem álcool, muito recomendado na carta do restaurante. Revelou-se óptimo para melhorar a memória: nunca mais, por cem anos que viva, serei capaz de esquecer o sabor horroroso daquela coisa.
No dia seguinte percorremos o South Rim até Spider Rock. Os navajos acreditam que a Spider Woman vive no topo da coluna mais alta, que tem uma altura de 240 metros. A Marvel Comics, aqui?!, perguntarão. Nada disso: a Spider Woman é uma figura mítica ligada ao surgimento da vida na terra. No princípio do mundo, enfeitou uma das suas teias com orvalho e atirou-a para o espaço: das gotas de água nasceram as estrelas. É amiga dos navajos, e protege-os. Foi ela quem ensinou as mulheres dos antigos a tecer, enquanto o seu marido, o Spider Man, ensinou os homens a construir um tear:
Cruzam-se os pólos da terra e do céu para fixar a estrutura; alinham-se raios de sol na teia; os liços são feitos de relâmpagos difusos e cristais de rocha, para manterem a qualidade das fibras; para melhor cerrar a trama, põe-se na ripa a auréola do sol; usar para o pente uma concha branca que purifique os fios.
Embora amiga e generosa, a Spider Woman pode ser muito severa. Captura as crianças que se portam mal, leva-as para a sua casa, devora-as, e deixa os seus ossos a secar ao sol - são as manchas brancas no topo da coluna.
Com uma protectora deste calibre, não admira que as gerações mais novas prefiram aproximar-se da cultura americana...
Estava um dia glorioso para continuar a viagem, com destino a Monument Valley.
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5 comentários:
A Rita, do Boas Intenções, recomendou-me os teus posts sobre Visitar Berlim. Quero, desde já, agradecer. Vou aproveitar todas as dicas e prometo comentar à chegada! Obrigada.
Ainda bem que gostas!
Acrescento só mais uma dica: Agosto é má altura para fazer este percurso, porque faz um calor insuportável. Em meados de Setembro deve ser um espectáculo: as árvores já a tingir, e muito menos calor.
Bela, isto é absolutamente fantástico. Que escrita magnífica, sem rodriguinhos e que narrativa tão bem esgalhada. Gosto muito. Muito.
Isa,
ó pra mim a inchar!
Diz mais algumas destas, e fazes de mim o maior mamífero do mundo.
;-)
Tu não existes, miúda! Qual Isa qual carapuça: excepcional!
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