17 maio 2010

pesada herança



No documentário Hitler's Children conta-se que a sobrinha-neta de Göring decidiu esterilizar-se para não dar origem a novos monstros na família: não queria "produzir mais Görings". O seu irmão seguiu-lhe o exemplo.

Ela conta, com tristeza e susto, que o espelho não lhe mostra apenas a sua imagem, mas simultaneamente a de um terrível assassino: os mesmos olhos, as mesmas maçãs do rosto, o mesmo perfil do tio-avô. Uma imagem que lhe é insuportável.

Eu vejo, e pasmo: depois de tantas décadas, aquelas malfadadas teorias de raça, fisionomia e carácter estão ainda de tal modo inculcadas numa pessoa, que esta prefere impedir-se de ter filhos a transmitir esse "mal genético" às futuras gerações.

(fotos tiradas deste site)

6 comentários:

jj.amarante disse...

É realmente assustador. Se vivesse em Portugal talvez tivesse aprendido que "quem vê caras não vê corações..."

Helena Araújo disse...

jj.amarante,
desculpe, mas vou citá-lo: é realmente assustador.
Aflige-me imenso uma mulher esterilizar-se por ter medo de poder dar à luz um monstro. É a perversão de toda a esperança e confiança no futuro.
Talvez ela de facto tenha uma pesada herança, não genética, mas cultural. Apesar de todo o esforço que, com certeza, terá feito para se libertar dessa carga ideológica.
Confesso que me incomoda falar assim de pessoas concretas, mas a pergunta permanece: até que ponto nos podemos libertar da herança cultural familiar, mesmo duas gerações mais tarde?
Aquilo devia ser uma ideologia muito pesada: a Goebbels matou os filhos porque entendia que uma Alemanha sem Hitler não era lugar para eles.

antuérpia disse...

Desconcertante o assunto do teu post, Helena.
Pergunto-me se a sobrinha-neta de Göring não estará a ser vítima apenas de um pensamento supersticioso, sabes?
Dá a ideia (mas quem sou eu para o dizer) de se tratar de uma forma de uma pessoa hiper-racional lidar com o facto de ser supersticiosa.

É evidente que isso não explicaria tudo. Ela poderia ter essa «superstição» e, simplesmente, através dos meios normais (e outros até menos ortodoxos, eu não disse isto) evitar ter filhos.

A esterilização faria, assim, parte do lado B do seu tormento: o da necessidade de redenção, de «redimir» deste modo os pecados do tio-avô.

Seria o seu tributo à humanidade, fruto de uma herança pesada de que não é responsável, mas pela qual se auto-responsabiliza...e o que menos lhe importa é se tem razão, ou não.
Fez o que acha que devia ser feito e nisso encontra a paz de espírito possível (que nunca há-de ser muita).
Deve ser de doidos viver na sua pele.

Helena Araújo disse...

Não sei se é superstição, sabes?
Na época nazi, havia teorias raciais que analisavam com muito detalhe a relação entre a fisionomia e o carácter. Por isso é que os arianos eram tão bons e era importante que se multiplicassem: é que nessa raça os traços do rosto correspondiam ao carácter mais promissor. Mas mesmo entre os arianos havia variações de fisionomia e, consequentemente, qualidades. Podia dizer-te os nomes e as qualidades, mas esqueci-me: essas coisas metem-me nojo.

Será que, mesmo indo já na terceira geração, é possível libertar-se completamente desta ideologia? Até que ponto é que as palavras que usamos ("degenerado", por exemplo) condicionam o nosso modo de ler o mundo e de gerir o nosso próprio destino?
Até que ponto é que esta mulher está livre para pensar que ter as mesmas maçãs do rosto que o tio-avô não a condiciona, nem a um descendente seu, para ser um monstro como ele?

Por outro lado, não deve ser só a fisionomia. Há tanta coisa que passa de pais para filhos, que compreendo que ela tema o que de mau possa passar inadvertidamente para um filho.

Não deixes de ler o meu próximo volume: Helena explica a Psicologia ao Povo. Edição em formato livro de bolso (não havia mais pequeno), oferecido às sextas-feiras com o Jornal do Crime.

jj.amarante disse...

"Na época nazi, havia teorias raciais que analisavam com muito detalhe a relação entre a fisionomia e o carácter. Por isso é que os arianos eram tão bons...": nunca li essas teorias que soçobram perante o aforismo: loiro de olhos azuis como Hitler, esbelto como Goering, alto e forte como Goebbels.

Helena Araújo disse...

Pois é, essa está muito bem achada, mas admito que na altura desse direito a pelotão de fuzilamento, ou chamada para a frente Leste...

A minha filha tinha um livro para adolescentes feito a partir de relatos de pessoas que eram criança na época nazi. Conta histórias incríveis, por exemplo: o miúdo de 15 anos que queria ir defender o Reich nos últimos dias do estertor, e o avô arranjou maneira de lhe partir o pé de propósito, para lhe salvar a vida. Numa das histórias, a autora contava que na escola era obrigada a aprender a distinguir as variações de raça entre os próprios alemães. Ela própria achava que pertencia à raça superior. Por isso, qual não foi o seu espanto quando a professora a chamou à frente para dar com ela um exemplo prático da subraça ariana menos dotada, e chamou a "burrinha" da turma para mostrar as características da raça "óptima". (Eu devia era pôr aspas em quase todas as palavras - isto é uma conversar insuportável).
A aluna ficou muito magoada, e foi para casa reconciliar-se com os da sua laia - os poetas e músicos eslavos, por exemplo.
Eu fiquei a pensar que isto terá sido um acto de resistência da professora carregado de ironia.