31 maio 2010

encantamento

Ontem foi dia de encantamento na Filarmonia.
Um daqueles dias em que tenho pena de Portugal estar tão longe, e de não poder partilhar estes momentos especiais com os amigos portugueses.

De manhã, o Lang Lang deu uma aula de piano para 100 pessoas. No palco da Filarmonia havia dois pianos de cauda e 49 pianos eléctricos, para "thousand fingers" tocarem uma peça de Schubert a quatro mãos. Cem alunos, dos cinco aos setenta anos.
O homem que entrou na sala, no meio de grande aplauso, surpreendeu-me: a cabeça demasiado grande para o corpo franzino, o cabelo espetado em estilo ouriço, a cara muito larga. Sapatos com reflexos metálicos, jeans. Que aspecto esquisito, pensei eu.

Mal começou a aula, esqueci todas essas incompatibilidades com os meus preconceitos.
Foram duas horas de boa disposição e beleza: Lang Lang a tocar com uma mão e a entoar a música com a outra, ou a andar de um lado para o outro explicando com o ritmo das passadas o que queria e não queria, ou a explicar que determinada frase devia soar como "um cão com febre"...

A meio da aula, uma surpresa para o pianista: passaram parte deste filme, que ele contou ter sido um dos seus preferidos quando era uma criança a começar a tocar piano, e que ainda hoje o considera muito inspirador.



E era vê-lo a tocar a quatro mãos com Tom, a rir, a fazer figura de criança outra vez.
No fim, houve votação: quem prefere o Jerry? Quem prefere o Tom?
Lang Lang prefere Tom, porque o Jerry faz batota. Hehehe, já temos uma coisa em comum.

A conversa continuou:
"Como é que conseguiu tornar-se famoso?", perguntou uma das alunas, por sinal muçulmana (não é que seja importante, mas foi bonito ver entre os pianistas uma miúda com o cabelo coberto por um belíssimo véu).
Lang Lang gagueja, a apresentadora vem em seu auxílio: "Porque é um pianista genial".
"Obrigado, obrigado por dizer isso. Não tenho sempre a certeza de que seja verdade." - e acrescenta, com um sorriso maroto: "Trabalhei muito. E um dia chamaram-me para substituir alguém que estava com febre. É esse o segredo para se tornar famoso: trabalhar arduamente, e esperar que alguém adoeça."

"E é, ou quer ser, um dos melhores pianistas do mundo?", pergunta outra adolescente.
"Quero ser o melhor possível de mim próprio. É esse o meu objectivo."

A conversa continua. Lang Lang fala do trabalho diário, aconselha os alunos a duplicarem o tempo de estudo ("se estudam 30 minutos por dia, passem a estudar uma hora; se estudam uma hora, passem para duas"), fala do horror das escalas e dos arpejos, de que ele não gostava nada e que os vizinhos pura e simplesmente odiavam (a sala solta mais uma vez uma gargalhada). E conta como trabalha, como se informa sobre a peça que está a estudar, e a imagina e recria. Fala longamente sobre a respiração da música, da necessidade de cantar a peça enquanto se toca, de respeitar as frases que pedem para inspirar e expirar profundamente, os momentos em que há que suster a respiração.
Vindo de um chinês, não admira: uma aula de yoga para pianos.

À tarde, é a vez de dois dos melhores alunos de escolas de música berlinenses. Uma educação do ouvido e do gosto. O aluno toca, e Lang Lang dança ao lado dele, para melhor exprimir o que quer. Ou toca ele próprio aquela frase (aaaahhhhhhh...). Ou diz: "nesta sequência, parecia que tinha uns copitos a mais".

Saí da Filarmonia com um sorriso de encantamento, que não havia maneira de passar.

13 comentários:

io disse...

Que delícia, minha querida. Adorava ter estado lá, contigo ao meu lado. Um beijo grande

Helena Araújo disse...

Pensei muito em ti. Tive mesmo pena que não pudesses ter lá estado! E mais o Perseu, e mais o Valkirio...

Gi disse...

Mas foi o Tom que começou as hostilidades, Helena.
Fantástico concerto. Obrigada por partilhar.

Helena Araújo disse...

Gi,
no fundo, no fundo, a culpa foi do Liszt! Foi ele que incluiu na partitura as notas da cama do Jerry...

Paulo disse...

Ahahahahah. Que pena tenho eu também de não ter assistido à aula. Em vez, andava a passear bávaros por Lisboa. Vê lá se organizas qualquer coisita do género quando eu aí for.

Helena Araújo disse...

Está prometido!

antuérpia disse...

Que assombroso momento de animação, Helena. O maestro pode ter sido notável e se dizes, acredito...mas o que posso testemunhar é o seu fabuloso gosto em matéria de desenhos animados.
O «Tom e Jerry» são um prodígio no que respeita à transmissão da importância dos pequenos/grandes nadas na construção de ambientes, a dar-nos a ideia correctíssima do mundo à dimensão dos que são pequeninos (agora até pode ser relativamente banal, não creio que na altura o fosse) pela utilização do rigor no pormenor.
Quantas vezes me espantei como era possível que, pela simples mudança de tipo de rodapés que servem de cenário a cada história, se percebesse dela tanta coisa.
Mas esta preciosidade, em especial, creio que não conhecia. Valeu!

Helena Araújo disse...

Antuérpia,
como já só cá estamos nós as duas, conto-te um segredo: tenho a sensação que o filme que passaram não era este. A peça era de Liszt (não saberei dizer qual, eu sou aquela que ouve Satie e diz "olha, um dos quadros do Mussorgsky, o do Gnomo") mas as imagens não correspondem inteiramente. O princípio do filme é o mesmo, mas logo no início da peça Tom estica o mindinho para atingir uma tecla nos agudos, de uma maneira que nem Liszt teria conseguido fazer. Lang Lang também se riu muito a contar que gostava de ter dedos tipo spaghetti.
Ou estou cegueta, ou este filme não tem dedos spaghetti.
O público também riu muito com a cena de limpar o suor com aquele pano enorme. É que Lang Lang tinha um, igualzinho. E bem precisou dele: no fim da segunda aula, as costas do casaco já estavam atravessadas de suor.

Paulo disse...

[Eu vi lá uns dedos "spaghetti" perto do fim, mas faz de conta que já cá não estou.]

Helena Araújo disse...

Aaaah, tudo se esclarece. Obrigada por estares aqui, Paulo. Encurtaram o filme, foi isso. E eu não tive tempo de o ver todo, por isso me faltou o tal dedo que fazia inveja ao Lang Lang.
Sabias que o Liszt cortou a pele entre os dedos para poder tocar intervalos de 10 notas? (como é que se chama uma oitava de 10?)

No museu na casa dele, em Weimar, tinha umas gravaçõe muito engraçadas: relatos de aulas dadas por ele, feitos por alunos seus. Um deles contava que uma vez uma aluna tocou horrivelmente mal. Ele andava pela sala como um leão enjaulado, volta e meia dizia "oh, meine Güte" ou algo do género, os alunos estavam cada vez mais aflitos com a trovoada que se aproximava cada vez mais forte...
...e quando ela acabou de tocar, ele foi ter com ela, fez-lhe uma pequena festa nos caracóis, deu-lhe um beijo na testa e disse:
"Arranje de casar em breve, mein Mädchen. Adeusinho!"

Paulo disse...

Sabes que se pode traçar uma linha entre Liszt e Artur Pizarro? Viana da Mota foi aluno de Liszt e professor de Sequeira Costa, que, por sua vez, foi professor de Pizarro. Mas não estou a ver o Artur a auto-mutilar-se para dar "oitavas de dez".

Francisco L. disse...

(Chama-se Décima)

Helena Araújo disse...

elementar, meu caro Watson

Agora que vejo o nome escrito, só me espanta como é que me tinha esquecido disso!