Ontem foi dia de encantamento na Filarmonia.
Um daqueles dias em que tenho pena de Portugal estar tão longe, e de não poder partilhar estes momentos especiais com os amigos portugueses.
De manhã, o Lang Lang deu uma aula de piano para 100 pessoas. No palco da Filarmonia havia dois pianos de cauda e 49 pianos eléctricos, para "thousand fingers" tocarem uma peça de Schubert a quatro mãos. Cem alunos, dos cinco aos setenta anos.
O homem que entrou na sala, no meio de grande aplauso, surpreendeu-me: a cabeça demasiado grande para o corpo franzino, o cabelo espetado em estilo ouriço, a cara muito larga. Sapatos com reflexos metálicos, jeans. Que aspecto esquisito, pensei eu.
Mal começou a aula, esqueci todas essas incompatibilidades com os meus preconceitos.
Foram duas horas de boa disposição e beleza: Lang Lang a tocar com uma mão e a entoar a música com a outra, ou a andar de um lado para o outro explicando com o ritmo das passadas o que queria e não queria, ou a explicar que determinada frase devia soar como "um cão com febre"...
A meio da aula, uma surpresa para o pianista: passaram parte deste filme, que ele contou ter sido um dos seus preferidos quando era uma criança a começar a tocar piano, e que ainda hoje o considera muito inspirador.
E era vê-lo a tocar a quatro mãos com Tom, a rir, a fazer figura de criança outra vez.
No fim, houve votação: quem prefere o Jerry? Quem prefere o Tom?
Lang Lang prefere Tom, porque o Jerry faz batota. Hehehe, já temos uma coisa em comum.
A conversa continuou:
"Como é que conseguiu tornar-se famoso?", perguntou uma das alunas, por sinal muçulmana (não é que seja importante, mas foi bonito ver entre os pianistas uma miúda com o cabelo coberto por um belíssimo véu).
Lang Lang gagueja, a apresentadora vem em seu auxílio: "Porque é um pianista genial".
"Obrigado, obrigado por dizer isso. Não tenho sempre a certeza de que seja verdade." - e acrescenta, com um sorriso maroto: "Trabalhei muito. E um dia chamaram-me para substituir alguém que estava com febre. É esse o segredo para se tornar famoso: trabalhar arduamente, e esperar que alguém adoeça."
"E é, ou quer ser, um dos melhores pianistas do mundo?", pergunta outra adolescente.
"Quero ser o melhor possível de mim próprio. É esse o meu objectivo."
A conversa continua. Lang Lang fala do trabalho diário, aconselha os alunos a duplicarem o tempo de estudo ("se estudam 30 minutos por dia, passem a estudar uma hora; se estudam uma hora, passem para duas"), fala do horror das escalas e dos arpejos, de que ele não gostava nada e que os vizinhos pura e simplesmente odiavam (a sala solta mais uma vez uma gargalhada). E conta como trabalha, como se informa sobre a peça que está a estudar, e a imagina e recria. Fala longamente sobre a respiração da música, da necessidade de cantar a peça enquanto se toca, de respeitar as frases que pedem para inspirar e expirar profundamente, os momentos em que há que suster a respiração.
Vindo de um chinês, não admira: uma aula de yoga para pianos.
À tarde, é a vez de dois dos melhores alunos de escolas de música berlinenses. Uma educação do ouvido e do gosto. O aluno toca, e Lang Lang dança ao lado dele, para melhor exprimir o que quer. Ou toca ele próprio aquela frase (aaaahhhhhhh...). Ou diz: "nesta sequência, parecia que tinha uns copitos a mais".
Saí da Filarmonia com um sorriso de encantamento, que não havia maneira de passar.
13 comentários:
Que delícia, minha querida. Adorava ter estado lá, contigo ao meu lado. Um beijo grande
Pensei muito em ti. Tive mesmo pena que não pudesses ter lá estado! E mais o Perseu, e mais o Valkirio...
Mas foi o Tom que começou as hostilidades, Helena.
Fantástico concerto. Obrigada por partilhar.
Gi,
no fundo, no fundo, a culpa foi do Liszt! Foi ele que incluiu na partitura as notas da cama do Jerry...
Ahahahahah. Que pena tenho eu também de não ter assistido à aula. Em vez, andava a passear bávaros por Lisboa. Vê lá se organizas qualquer coisita do género quando eu aí for.
Está prometido!
Que assombroso momento de animação, Helena. O maestro pode ter sido notável e se dizes, acredito...mas o que posso testemunhar é o seu fabuloso gosto em matéria de desenhos animados.
O «Tom e Jerry» são um prodígio no que respeita à transmissão da importância dos pequenos/grandes nadas na construção de ambientes, a dar-nos a ideia correctíssima do mundo à dimensão dos que são pequeninos (agora até pode ser relativamente banal, não creio que na altura o fosse) pela utilização do rigor no pormenor.
Quantas vezes me espantei como era possível que, pela simples mudança de tipo de rodapés que servem de cenário a cada história, se percebesse dela tanta coisa.
Mas esta preciosidade, em especial, creio que não conhecia. Valeu!
Antuérpia,
como já só cá estamos nós as duas, conto-te um segredo: tenho a sensação que o filme que passaram não era este. A peça era de Liszt (não saberei dizer qual, eu sou aquela que ouve Satie e diz "olha, um dos quadros do Mussorgsky, o do Gnomo") mas as imagens não correspondem inteiramente. O princípio do filme é o mesmo, mas logo no início da peça Tom estica o mindinho para atingir uma tecla nos agudos, de uma maneira que nem Liszt teria conseguido fazer. Lang Lang também se riu muito a contar que gostava de ter dedos tipo spaghetti.
Ou estou cegueta, ou este filme não tem dedos spaghetti.
O público também riu muito com a cena de limpar o suor com aquele pano enorme. É que Lang Lang tinha um, igualzinho. E bem precisou dele: no fim da segunda aula, as costas do casaco já estavam atravessadas de suor.
[Eu vi lá uns dedos "spaghetti" perto do fim, mas faz de conta que já cá não estou.]
Aaaah, tudo se esclarece. Obrigada por estares aqui, Paulo. Encurtaram o filme, foi isso. E eu não tive tempo de o ver todo, por isso me faltou o tal dedo que fazia inveja ao Lang Lang.
Sabias que o Liszt cortou a pele entre os dedos para poder tocar intervalos de 10 notas? (como é que se chama uma oitava de 10?)
No museu na casa dele, em Weimar, tinha umas gravaçõe muito engraçadas: relatos de aulas dadas por ele, feitos por alunos seus. Um deles contava que uma vez uma aluna tocou horrivelmente mal. Ele andava pela sala como um leão enjaulado, volta e meia dizia "oh, meine Güte" ou algo do género, os alunos estavam cada vez mais aflitos com a trovoada que se aproximava cada vez mais forte...
...e quando ela acabou de tocar, ele foi ter com ela, fez-lhe uma pequena festa nos caracóis, deu-lhe um beijo na testa e disse:
"Arranje de casar em breve, mein Mädchen. Adeusinho!"
Sabes que se pode traçar uma linha entre Liszt e Artur Pizarro? Viana da Mota foi aluno de Liszt e professor de Sequeira Costa, que, por sua vez, foi professor de Pizarro. Mas não estou a ver o Artur a auto-mutilar-se para dar "oitavas de dez".
(Chama-se Décima)
elementar, meu caro Watson
Agora que vejo o nome escrito, só me espanta como é que me tinha esquecido disso!
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