"Arranje-me um pobre", dizia a outra - o que me devia servir de aviso para parar de escrever aqui mesmo, mas esta minha atracção pelo abismo ainda me vai perder.
Pois é: gosto dos sem-abrigo de San Francisco. Não direi de todos, porque ainda estou muito longe de ser a Madre Teresa. Mas aprendi com alguns deles a dignidade humana para além das circunstâncias em que se vive. Nos EUA, a pobreza pode acontecer a qualquer um - hoje ele, amanhã eu. Deve ser a isso que chamam igualdade...
Havia um sem-abrigo muito simpático à entrada do nosso supermercado. Raramente lhe dava dinheiro, mas muitas vezes partilhava com ele o que acabara de comprar. Alegrei-me por ele no dia em que apareceu lavado e com a barba feita; fiz-lhe um elogio, retribuiu-me o sorriso, feliz.
E há sempre os da Market Street.
Admirava o sarcasmo do cartaz "another day in paradise" que um exibia, junto ao chapéu sempre vazio, perto do escritório onde eu trabalhava.
Conhecia alguns deles - a sua imagem, mais que as suas histórias. E eram tantos!
Por essa altura, uma amiga contava-me, aterrada, que um conhecido dela perdera o emprego e a fortuna no crash das dot-com. Era programador, a empresa fora à falência, as acções perderam o valor... já estava a viver no carro.
Num registo mais fútil, outra amiga comentou que os sem-abrigo da Market Street são especialistas de moda. Passam o dia no passeio, a ver passar as mocinhas todas apericaltadas para a downtown. E já que não têm nada a perder, permitem-se ser sinceros. Ela estava toda orgulhosa por lhe terem elogiado um chapéu.
Até que um belo dia chegou a minha vez: aquele "Wow, nice pants, lady!" que me compensou do "isso agora usa-se?" do Joachim e do "ó mãe, tu compraste isso, ou deram-te?" da Christina.
Qual quê, eles não sabem nada! Styling é com os sem-abrigo da Market Street.
Desde então há uma dúvida que não me abandona: quanto se deve deixar no chapéu de uma Anna Wintour em forma de pedinte sentado no passeio?
2 comentários:
Quando for grande também quero limpar assim o pó! (eu só dou valores que já mereçam um bocadinho esse nome)
Já lá vou, Rita. Já lá vou!
Perdi o meu aspirador - provavelmente está soterrado pelos livros.
Tu só dás valores, que valores?
Essa parte não percebi.
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