02 março 2010

por outras palavras...

Os temas que o senhor tenente-coronel piloto aviador João José Brandão Ferreira aponta no espaço de opinião que o Público lhe disponibilizou são importantes. O modo como os apresenta é que é completamente descabido.
Pergunto-me se o Público pesou bem as consequências desta oferta de espaço para dar voz a quem, em última análise, faz um discurso que promove o ódio e a desconfiança entre diversos grupos sociais. Não podia antes ter dado voz a alguém que, tendo sensivelmente a mesma opinião, a coloque de modo a fazer avançar o debate?
Ainda sobre o Público: a frase "esta tragédia que fará o holocausto parecer uma coisa menor" é pura e simplesmente inaceitável - e um jornal que publica um disparate destes perde credibilidade.

Fazendo de conta que concordo com o que ele diz (e tenham paciência, mas a liberdade de expressão vale para todos), vou tentar traduzir as passagens mais hard core para uma linguagem mais apropriada (em itálico), que permita o debate em vez de nos provocar merecidos esguichos:


A demografia e o casamento entre géneros idênticos

A Demografia é das questões menos estudadas a nível da sociedade e aquela a que os poderes públicos e o comum dos mortais deixou de prestar a mínima atenção.

Preocupados todos, que estamos, com a crise económica; vinculados ao consumismo e à cultura do prazer; anestesiados pela segurança social; sobrevalorizados no nosso ego pelo primado do individualismo e inundados de muitos outros “ismos” com que a comunicação social nos matraqueia o coração e a cabeça, deixámo-nos possuir por perigosos mitos de fundamento néscio – mas apelativos – e somos postos à beira de precipícios cada vez mais perigosos.

Reduzida a mortalidade infantil, instituída a pílula e outros métodos contraceptivos; quebrados os laços familiares tradicionais; emancipada a mulher da distribuição tradicional de direitos e deveres sem que aos homens tenha ocorrido trocar de papéis com esta, ou ao menos dividir integralmente e a meias direitos e deveres, instituída a quase obrigatoriedade (por razões de ordem económica ou de realização pessoal) de ambos os progenitores trabalharem fora de casa, consolidada a ditadura dos direitos face aos deveres e mais uma quantidade de coisas que seria ocioso enumerar – e de que todos temos sido relapsos a reflectir nas consequências – veio a originar-se uma brutal redução no número de nascimentos. Esta redução teve especial incidência nos países da Europa Ocidental e por extensão em Portugal, países onde se verificou aquilo que é tido pelo maior (e melhor) desenvolvimento da sociedade.

Ora a redução da natalidade que a nível europeu desceu para uma média de 1,4 nascimentos por mulher (em Portugal actualmente está em 1,3) veio colocar a questão da sobrevivência destas sociedades no futuro (1). De facto sabe-se através de estudos sérios, que uma população para se renovar, cada mulher precisa de conceber 2,1 filhos, em vida e que a mesma população deixa de se poder manter em termos culturais quando esse número desce para os 1,9. Já se sabe isto há muito tempo, mas ninguém liga coisa nenhuma, como se governos e pessoas tivessem sido atacados por um desejo de suicídio colectivo.
Faltam braços para o trabalho, jovens para os Exércitos, fecham escolas e passou a haver assimetrias etárias cada vez mais assinaláveis.

O avanço da medicina tem aumentado a esperança de vida das pessoas o que faz com que a população idosa seja cada vez maior, com o aumento de custos para a Segurança Social. E tem sido por esta via – que não é a mais crítica, mas aparenta ser a mais sensível - que alguns governantes se começaram a preocupar: falta-lhes o dinheiro!

A tudo isto é necessário juntar os fluxos emigratórios e imigratórios. Isto é, por um lado os países ocidentais vêem chegar ao seu território milhões de seres de outros continentes que estão a mudar as suas nações, e vêem partir, por outro lado, os seus melhores cérebros, que procuram realizações pessoais em países mais avançados, ou de oportunidade.(2)

A demografia tem sido escamoteada com os nascimentos de filhos de emigrantes o que não é propriamente a mesma coisa que nascerem nacionais, dado que, sendo aqueles provenientes em grande parte de grupos de mais baixos recursos e com maior dificuldade no acesso ao ensino e à cultura, se cria um desequilíbrio na estrutura social: corre-se o risco de as próximas gerações apresentarem uma muito maior parcela de pessoas que não tiveram a oportunidade de aceder a um patamar mais alto de cultura e formação.

O “multiculturalismo”, entendido como a coexistência, no mesmo espaço, de sociedades paralelas e sem trocas culturais, traz consigo o risco de futuras convulsões sociais graves, como já se vê em alguns países europeus. Esta situação é preocupante em termos da preservação das justas aspirações de individualidade cultural(e soberana) (3). Acresce a isto a vontade de organizações internacionalistas em quererem acabar com as Nações... (4)

Face a estes factos novos, ou numa dimensão até agora desconhecida, na vida social e nacional, os poderes públicos eleitos justamente para cuidarem do governo da cidade, em vez de estudarem perspectivas para a resolução dos problemas, em vez de restaurarem o cimento familiar e promoverem a fecundidade, optam justamente por fazer o contrário.

Em vez de se promover a vida, aposta-se na cultura da morte, de que as leis abortivas e a eutanásia são exemplos maiores; em vez de se organizar a educação e a estrutura da sociedade para a harmonia familiar, tudo se faz para facilitar a dissolução do casal e o afastamento de ascendentes e descendentes; em vez de se apostar nos incentivos à natalidade, dá-se apoio preferencial a pessoas em situação difícil (desemprego, toxicodependência, criminalidade). Em vez de confiar na capacidade de cada família educar para uma natalidade consciente e para o desenvolvimento de uma sexualidade maturada, impõem a todos os alunos aulas de educação sexual nas escolas, de cujos conteúdos (e, sobretudo, de cuja moral) algumas famílias discordam profundamente.

(Os dois parágrafos que se seguiriam são completamente intraduzíveis e inaproveitáveis. Falta provar que nos países mais avançados haja mais deboche e mais pedofilia, mais abortos e dramas sociais do que havia dantes. Isto é comentário de quem tem a memória muito curta.
Quanto à crítica ao Parlamento Nacional, é fraquinha. Se o Parlamento Nacional tivesse de pedir opinião ao povo sobre o que é mais urgente resolver, não fazia mais nada. Eu, por exemplo, acho que neste momento o mais urgente de tudo é tirar ao Poder Autárquico o direito de abater ou podar árvores, porque tenho o Presidente da Junta lá da minha terra desesperadinho para me arrancar umas oliveiras centenárias só porque quer alargar o caminho...)




***

Pontos para discussão:

(0) Antes de mais: num planeta com sintomas graves de esgotamento, podemos defender o aumento da taxa de natalidade para proteger interesses nacionais? Não seria mais adequado reduzir a quantidade de humanos à escala global?

(1) É importante para Portugal ou para a Europa "sobreviver em termos culturais"? Teme-se que uma mistura de culturas leve ao desaparecimento da cultura portuguesa ou europeia? Acredita-se ou não que pessoas de outras culturas aqui residentes serão capazes de aproveitar e interiorizar o melhor que a cultura europeia tem para oferecer? A sobrevivência da cultura europeia passa por uma política de natalidade ou por uma política de integração e de acesso de todos à cultura e à cidadania?
Por outro lado: a Europa, e Portugal, não precisaram de ser invadidos pelos EUA para se deixarem transformar culturalmente por este país. E não há taxa de natalidade que nos ponha ao abrigo de nos transformarmos segundo referências que, mesmo se consideradas positivas e enriquecedoras, levam a uma miscigenação da nossa cultura.

(2) "os seus melhores cérebros", viram? Estava a falar de mim. Hehehe. Ahem, desculpem.
Em parte é verdade: os imigrantes que chegam à Europa têm um nível de formação escolar bastante mais baixo do que os europeus que vão para fora do continente. Mas também é verdade que os imigrantes vêm para a Europa fazer os trabalhos que os europeus não querem fazer, que - agora fala a cristã - não podemos fechar as portas da riqueza europeia e da oportunidade aos mais desfavorecidos do resto do mundo, e que o movimento de globalização dos "cérebros", aliado a excelentes meios de comunicação, pode ser uma fantástica oportunidade de desenvolvimento para o mundo inteiro.

(3) Esta questão repete e acrescenta a que é apontada em (1): como é que se preserva uma cultura? O que é a cultura "soberana"? Em alguma época da História a cultura de uma sociedade foi estanque aos costumes de alguns dos seus grupos? Porque é que não sentimos que as telenovelas brasileiras (que arrumaram com o passeio higiénico de depois do jantar - alguém se lembra ainda disso?) sejam uma agressão à soberania da nossa cultura, mas tememos que os imigrantes nos imponham alguns dos seus usos? Mais concretamente ainda: tememos que daqui a três gerações a lei europeia se inspire na sharia? Temos razões para o temer? Temos meios para o evitar - sem que isso passe por desatar a produzir cristãos, ou proibir a entrada de muçulmanos, ou até esterilizá-los? (esta da esterilização é muito forte, eu sei, mas as outras duas possibilidades provêm da mesma raíz ideológica)

(4) Óptimo tema para discussão.

14 comentários:

Paulo disse...

É claro que o venerável Público deveria ter-te escolhido para escrever sobre este assunto, já que o senhor tenente aviador (é assim, não é?) tem o particular poder de nos deixar com grande desejo de o estrafegar. É que à falta de sol, em vez de irmos à praia somos obrigados a ler o que lhe passa pela cabeça, mesmo sem estarmos minimamente interessados.

Mas que coisa, essa história do teu Presidente da Junta querer arrancar as oliveiras. É um caso raríssimo.

maria disse...

Helena,

só tu para tirares discussão do tenente-coronel. O homem é louco e um louco perigoso. Li um texto dele onde lança umas ameaças ao Parlamento. Não é o caso que ele vá liderar algum golpe de Estado, mas não está assim tão sozinho nas ideias que defende. Bom, e só de pensar que ele se afirma católico...dá-me cá umas náuseas...

Helena Araújo disse...

Paulo,
pois é pena o meu Presidente da Junta ser um caso raro. Estava mesmo com vontade de tornar este problema a maior prioridade do Parlamento! ;-)

Não sei como se deve chamar o senhor aviador, que não percebo nada de etiquetas do tempo do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral. Pela modernidade do discurso, suponho de será da mesma geração.

O Público dantes tinha alguém que lia previamente o que era publicado. Para evitar publicar ilegalidades, insultos, atentados à ordem pública...
Mas pelos vistos resolveram começar a poupar dinheiro para esses lados.

Helena Araújo disse...

MC,
eu só quis experimentar como é defender aquele tipo de posição dentro dos limites da decência.

Lamento sinceramente que o Público tenha arranjado tão mau porta-voz para esse quadrante de opinião. Porque os assuntos são importantes e deviam ser discutidos sem o ruído causado pelo tipo de linguagem que ele usa.

Pessoalmente, acho que o mundo já tem pessoas em quantidade mais que suficiente. Aquela questão da Demografia esconde uma questão de elitarismo e racismo.
E era o que mais faltava, começarmos a perseguir os homossexuais ("começarmos", disse ela...) por motivos de natalidade. Isso é uma aproximação perigosa ao período nazi, em que matavam os gays porque eles não reproduziam, mas poupavam as lésbicas porque ainda havia a hipótese de as engravidar.

maria disse...

Helena,

soltou-se-me um palavrão com essa cena nazi de poupar as lésbicas. Que não sabia. Bom, não é o facto de elas serem poupadas, é a perversão disso tudo. Tenho pensado muito disso. Vou alinhavar um post sobre...

Helena Araújo disse...

MC,
há tempos, uma simpática alemã, apresentadora de TV, defendeu numa mesa redonda na televisão que nem tudo no sistema nazi era mau. A protecção da família, por exemplo, era algo muito positivo - dizia ela.
A simpática perdeu o emprego que tinha na televisão (disseram que uma pessoa com lacunas tão grandes na sua cultura geral não está em condições de representar aquela empresa), e os media tiveram oportunidade de fazer uma revisão da matéria dada, e provavelmente por muitos esquecida. A chamada "protecção à família" e a sobrevalorização da mulher no seu papel de mãe (ao quarto filho até recebiam uma medalha por bons serviços prestados à Pátria!) eram a face visível de uma ideologia profundamente perversa: interessava produzir arianos, o mais possível - homens para os exércitos, mulheres para continuar a reprodução. Os homossexuais eram um grão de areia nesta engrenagem.
O sistema destruía-os, como destruía todos os que não "serviam" o sistema: os deficientes mentais, os "degenerados", etc.

Rita Maria disse...

1- É importante para o mundo proteger o possível de todas as culturas, línguas e formas de expressao e todos os dias perdemos algumas, por um lado porque o ser humano é profundamente empático e tende a aproximar-se do outro em vez de se demarcar (a nao ser quando a isso levado). No entanto, nao há milagres, ao longo da História sempre morreram línguas e formas de expressao e nao me parece que estejamos necessariamente a ficar mais pobres, porque todos os dias nascem também outras formas de expressao (que ainda nao nos parecem igualmente boas, porque somos todos um pouco resistentes à mudança). Isto nao implica que um trabalho, quase museológico, de preservaçao nao seja urgente, especialmente quando falamos de culturas sob ameaça (como os índios da Amazónia e os tibetanos, nao como os grandes mestres Europeus) (Viste aquele meu vídeo das Ted talks?). Mas a dialéctica das culturas soberanas é tao natural como potencialmente criadora, se nao coadjuvada por mecanismos externos.

2- Quando coloco a questao da assimilaçao cultural em termos de empatia, parto do princípio de que estabelecemos a possibilidade do diálogo (ou melhor: parto do princípio que ela nos é natural e congénita e que nao lhe criamos barreiras artificiais). Mas criamos, todos os dias. Como divulgar o melhor da cultura europeia? O modelo vigente assenta na proclamaçao da sua superioridade face às outras (-1), na distinçao dos intelectuais entre alta e baixa cultura (olha estes germanismos giros), afastando da alta pela sua arrogância quem já se sentiu ofendido por lhe chamarem idiota por andar a ler o Dan Brown (-2), na sua teimosa resistência em apresentar-se às massas que nao a vao compreender, certamente (-3) e, claro, porque é cara e nao dá dinheiro,, a servi-la a quem a pode pagar (-4). Ou seja: o melhor da cultura europeia anda a fazer o seu melhor para ser uma anti-cultura, uma cultura paralela, de enclave.

3- Quanto aos melhores cérebros, assino logo debaixo de ti e do desenvolvimento do mundo inteiro. A produçao intelectual está-se, ou devia estar, nas tintas para preocupaçoes nacionalistas. As economias de países concretos nao estao? Pois que façam por atraí-los, ora. Em Portugal, só láa chegaremos quando a média de formaçao dos nossos empresários passar a quarta classe e a mentalidade "o meu tio, que tirou a quarta classe, sabe muito que mais que aí andam e faz bom dinheiro" deixar de ser desculpa para a falta de consideraçao que Portugal tem pelo conhecimento e pela educaçao.

(continua)

Rita Maria disse...

4- Muito de passagem: o perigo de sermos envadidos pela sharia nao passa de propaganda. Acho isto tao definitivo que nem me apetece discutir o assunto.

5- Ah, o fim dos estados naçao...eis a forma como eu vejo isto: nós tínhamos uma unidade administrativa, criada a certa altura por conveniência de uns ricos e poderosos específicos e que durante umas décadas, apesar de nos estar sempre a meter em guerra uns com os outros, foi razoavelmente eficaz. Um dia vemos que nao é mais e que se calhar os nossos interesses estavam melhor defendidos noutra. Fazemos outra.
Claro que as uniades administrativas sao criadas na boa companhia de artefactos ideológicos que as ancorem na populaçao como mais do que isso, senao nao sobreviviam 15 dias. E assim se criam unidades-administrativas-ideia, uma ideia de Minho, uma ideia de Portugal. E até rivalidades, entre a freguesia do monte de cima e do monte de baixo, por exemplo. E com estas ideias garantimos a sua continuidade. E sentimo-las como tradiçoes imemoriais, mesmo que tenham poucos séculos ou mesmo só umas décadas.

Mas podemos na mesma ter espírito crítico e eu por mim acho que especialmente na Europa os estados naçao sao uma estrutura que vai sendo cada vez mais ultrapassada, mesmo que os tais artefactos ideológicos o vao impedir por maiis umas décadas e nunca vao desaparecer como estruturas intermédias. Mas esse senhor, claramente, nem leu o Tratado de Lisboa (vá, eu também nao o li todo) e nao conhece o funcionamente de nenhuma outra organizaçao internacional. Talvez a NATO o faça em menor escala (porque o seu objectivo é outro), mas todas elas têm como unidade base o Estado Naçao, da UN à OMC.

6 - Uff, agora falta-me o fôlego e os números se calhar nao batem certo com os teus. E a quantidade de erros de ortografia que deve ir aqui? E isto caberá na tua caixa de comentários? Enfim, caberá se eu parar de escrever, só falta o disclaimer: estou a teorizar com base na minha energia matinal, mas no fundo nao percebo nada disto.

(nao coube, claro, mas eu sou teimosa)

Rita Maria disse...

Credo, subscrevi os comentários novos por e-mail e agora tive de ler essa minha miríade de frases inacabadas...desculpa! Se nao perceberes nada manda, que eu traduzo!

(e ufa! ainda bem que passaste a discussao lá para cima)

Helena Araújo disse...

Rita,
tu devias fazer um post disso.
O que dizes é demasiado importante para ficar perdido numa caixa de comentários.

Rita Maria disse...

Mas aqui as discussoes sao muito mais interessantes...

Helena Araújo disse...

Então quer dizer que me estás a pedir que reveja o teu texto (as bírbulas e assim) e o publique em forma de post?
Só um momentinho. Agora tenho de ir à IKEA, e depois trato disso.

Rita Maria disse...

Nao, nao sou assim tao convencida, estava a pedir que discutisses comigo aqui! Vá, bate-me, ataca, desconstrói!

Helena Araújo disse...

Agora não posso, tenho de ir dar um empurrãozinho à economia berlinense. Volto já, e depois bato-te quanto quiseres. E peço ajuda à Abrunho, ela é óptima a bater com inteligência e não-alinhamento.