17 março 2010

pedofilia e celibato

O Miguel Silva já disse tudo numa frase só, mas eu gosto de chover no molhado. E portantos...

A Igreja Católica está outra vez na berlinda. O celibato, esse maldito celibato, pai de todos os males. Eu olho para o meu passado e para as histórias que as minhas amigas contavam, e: nunca eram padres. Eram homens casados, alguns deles aproveitando-se da proximidade das amiguinhas das suas próprias filhas. Os jornais também estão cheios de casos de heterossexuais casados: como aquele, no Brasil, que engravidou a menina de nove anos, filha da sua mulher; como o Fritzl; como o homem de Sheffield que começou a violar as filhas quando estas tinham oito e dez anos, e engravidou sete vezes a mais velha e doze a mais nova. Uma lista de horrores que não tem fim.
Ainda da última vez que estive em Portugal, na romaria da Senhora da Agonia, tive oportunidade de observar um cinquentão que, mesmo ao lado da esposa, se ia aproveitando das circunstâncias para "chegar perto" das adolescentes.
Pergunto-me agora: porque é que não armei um escândalo? Porque é que não desmascarei aquele homem naquele momento? Fiquem avisados, ó apalpadores anónimos: estou em modo "cão de Pavlov", não tenciono voltar a fugir ao embaraço de uma situação dessas.

Nas últimas semanas, a sociedade alemã tem sido alertada para inúmeros casos de pedofilia, muitos deles ocorridos em internatos - da Igreja Católica, da Igreja Protestante, de uma famosa escola privada não confessional. Tem-se falado demasiado da Igreja Católica, e quase nada dos contextos familiares - onde ocorre a maior parte dos casos de abuso sexual infantil.
Finalmente a Igreja acordou, o Governo acordou, os serviços públicos de protecção à infância dão-se conta da sua responsabilidade.

Bem-vindos escândalos, e consequentes choque e debate. Bem-vinda a vergonha que nos atinge ao olhar para todos estes anos de "fazer de conta", de "assobiar para o lado", de" tentar resolver as coisas sem levantar muitas ondas". Atitudes inaceitáveis à luz dos princípios com que o nosso tempo olha para as crianças.
O sofrimento desses que agora ousam contar o que lhes aconteceu há décadas não poderá ser evitado, e duvido que possa ser minorado: não há maneira de lhes devolver a infância e um processo normal de amadurecimento. Mas é da sua coragem que está a nascer uma nova consciência na sociedade: nunca mais será tão fácil abusar de crianças.

É um facto trágico que até agora havia uma cultura generalizada de ignorar o que se passa. A criança cala, e as pessoas preferem não desconfiar. Ainda hoje há uma certa tendência para evitar o desconforto de abrir os olhos para o que está a acontecer, e de ter de tomar medidas. Como se a paz interior de uma criança valesse menos que a ilusão de que tudo está bem em determinada família ou comunidade.

Há alguns anos, uma alemã regressou à sua aldeia bávara depois de passar décadas nos EUA, para onde emigrara, e contou que fora vítima de abusos sexuais em criança. Outras mulheres revelaram que aquele homem lhes fizera o mesmo. E a aldeia? Reagiu contra a vítima: mandou-a regressar aos EUA.
Sobre a escola de Odenwald, um internato famoso que marcou uma etapa importante na pedagogia, foi recentemente revelado que o director e oito professores da escola abusavam continuadamente de alguns alunos. Em entrevista ao Spiegel (aqui, em alemão), o grande pedagogo Hartmut von Hentig, de 84 anos, nega e desvaloriza essas acusações: que não está nada provado, que nunca ouviu falar de nada - embora um dos acusados seja o seu companheiro, na época director da escola. E chega a criticar a actual directora da escola, que está a ceder depressa demais às acusações.

O escritor Bodo Kirchhoff relata neste texto (no Spiegel, em alemão) os abusos de que foi vítima, num internato protestante, por parte do director e Kantor, que era casado. Desta vez não traduzo o texto, porque a sua qualidade exige muito mais do que o Speedy Gonzalez é capaz de oferecer, e a mim falta-me o tempo. Conta que ganhou demasiado cedo a consciência de uma certa sexualidade, e no mesmo processo perdeu as palavras: cresceu mudo. E que todo o seu percurso de escritor não passa do esforço de recuperar a linguagem que perdeu de um golpe aos doze anos.
Não é um texto fácil. Ele atira as palavras com fisga, certeiras e duras.

Não é fácil abrir os olhos para este universo macabro.
Mas não há como escapar a isso. Finalmente tomam-se medidas, e é fundamental que neste debate não se confunda um arbusto exótico com a floresta: no centro não pode estar o celibato dos padres (ou a homossexualidade, que também costuma ser apontada como fonte de quase todos os males) mas uma doença grave.

18 comentários:

Paulo disse...

O texto de Bodo Kirchhoff não é fácil mas é muito bom. Espero que ainda venhas a ter tempo para o traduzir. Ele merece-o.
Deixo aqui um pequeno apontamento, porque também não tenho tempo para mais:

"E quem deseja, deseja, sejam os lábios de um rapaz, as coxas de uma mulher ou o sofrimento do crucificado, como São Francisco."

Und wer begehrt, begehrt, ob Knabenlippen, die Hüften einer Frau oder das Leid des Gekreuzigten wie der Heilige Franziskus.

Helena Araújo disse...

Paulo: e que tal se traduzisses tu?
Talvez com a ajuda do Speedy Gonzalez? Ou ao contrário: o Speedy Gonzalez traduz ainda mais à pressa que de costume, e tu melhoras?

Paulo disse...

Eu agora não posso. O dever chama-me, estou quase de saída e nos próximos dias vou andar em corrupio.
Mas tenta tu, talvez eu logo à noite possa dar-te uma ajudinha.

Olha, há pouco, eu também em versão Speedy Gonzalez, até me esqueci de maiuscular o Crucificado.

Helena Araújo disse...

Ai eras tu, Paulo?
Pensei que tinha sido a Fernanda Câncio... ;-)

Hoje não tenho tempo, por causa da tal cimeira de blogues. Mas vou pedir ao Speedy, e ele um dia destes envia-te a versão bruta da tradução, está bem?

noiseformind disse...

Gracas a Deus que em Portugal se provou, no processo Casa Pia, que aqui nao ha nada disso, por mais que se tente atirar lama aos Sor Dotores :)

Por outro lado ha sempre aquele estudo que diz que 70% das mulheres portuguesas com mais de 45 anos foram vitimas pelo menos uma vez de agressao fisica e/ou sexual... mas toda a gente sabe que "nao" quer dizer "da-me uns sopapos que eu alinho..."

Maria Carvalho disse...

É melhor traduzir todo o texto, Helena, que a frase destacada é um equívoco que desmerece o autor. São Francisco (ou a igreja) não transformou a aceitação paciente de sofrimento em desejo de padecer. Como Cristo, o santo também duvidou do desígnio de tal via e o ascetismo só lhe era suportável por estar crente das graças que receberia em troca no céu. Bodo Kirchhoff quer dizer outra coisa, mas para o entender é preciso ler mais do texto.

Helena Araújo disse...

Sobre São Francisco não diz mais nada. Se calhar trocou com outro santo qualquer, se calhar será uma ideia feita que ele lá terá.

Já comecei a traduzir isso, embora não tenha tempo nenhum.
A ver se se dá um jeitinho...

Paulo disse...

Não me parece que Bodo Kirchhoff se tenha enganado no santo, Helena. E o que ele quer dizer com aquela frase é exactamente o que lá está. Nem mais, nem menos. Como tu disseste, ele atira as palavras com fisga, certeiras e duras.

Destaquei aquela frase porque a considerei significativa, embora pudesse ter optado por muitas outras e nenhuma resumiria todas as ideias que nos são transmitidas no texto completo.

Eu também estou com pouco tempo mas, se precisares, tentarei ajudar-te.

Helena Araújo disse...

Paulo,
a MC afirma que São Francisco nunca desejou o sofrimento do Crucificado.
Nem a Igreja, acrescenta.

Não conheço o suficiente de um e outra para garantir que sim ou que não, mas penso que a MC saberá bastante bem do que está a falar.

Contudo, parece-me que esta referência a San Francisco não é tão importante.
Preferia que ele tivesse dito "os beatos dos cilícios" ou algo assim.

Obrigada pela oferta! A ver se vai! Embora eu esteja a sair para Roma daqui a 36 horas. Ai o stress dos tempos livres...

Paulo disse...

Ah vais para Roma... E eu neste fim de mundo. Se não nos virmos antes, que a geniesses.

Penso que a menção a São Francisco é importante, sim. É talvez ele o santo que melhor personifica a aceitação do sofrimento, com ou sem desejo e prazer. Mas isso seria um outro "Prós e Contras".

Se formos a ver bem as coisas, é no sofrimento auto-infligido dos franciscanos que se inspiram os "beatos dos cilícios", se bem que a mortificação, quer por via desse instrumento quer por outra, fosse praticada já muito antes do nascimento do santo de Assis.

Helena Araújo disse...

Paulo,
eu passo.
Não tenho elementos para entrar neste debate.
Não associo os franciscanos à mortificação, mas à descoberta do valor da pobreza como libertação.
Digo "pobreza", não "miséria" ou "masoquismo".
Mas para dizer mais que isto, teria de ir investigar. E como estou a sair para Roma, só me chega o tempo para investigar gelatarias e assim...
;-)

Na sexta-feira vou alugar uma bicicleta e passear pela cidade. Sugeres-me algum percurso especial?
(a bicicleta vem com guia audio, mas dá sempre para fazer um desvio)

Paulo disse...

Quem me dera ter dicas para te dar sobre Roma, sinal de que teria lá voltado mais recentemente. Vinte e dois anos depois, se a memória não me falha, sei eu lá dos caminhos. Segue o guia e, quando vires uma rua que te pareça gira, manda-o calar-se. Ah! Deve ser bonito percorrer a Via Appia Antica em bicicleta, mas isso também já hás-de tu saber. Eu fiz um trecho a pé mas começou a chover muito (estávamos em Novembro) e nunca mais parou.

Helena Araújo disse...

Ai que vou ter de dar o dito por não dito!
Troquei as MC.
Já não me bastava ter andado a ler o Canhoto dias a fio sem me aperceber que aquele Paulo Pedroso era o famoso Paulo Pedroso, agora leio Maria Carvalho e penso MC do Jardim de Luz.

Portanto: onde dizia "mas penso que a MC saberá bastante bem do que está a falar", desarrisquem. Não conheço a Maria Carvalho, não faço juízos sobre o que saberá ou não.

Peço desculpa a ambas as MCs.
E se a MC do Jardim da Luz aparecer por aqui, ó Maria: agradeço que me expliques um pouco mais sobre São Francisco. Em troca, explico eu sobre San Francisco, para o caso de um dia lá ires. :-)
(Prometo não confundir com Los Angeles, ou assim)

Maria Carvalho disse...

Pois, São Francisco só não conseguiu ser crucificado como Cristo porque, sendo bom, solidário e tão alegre, não arranjou quem lhe pregasse as mãos na cruz. Morreu sem ver satisfeito esse intenso desejo de dor e martírio. E ainda bem, porque, não se contentando em imitar a vida honesta, despojada e livre do Cristo humano, teria pecado gravemente ao cobiçar a mesma recompensa divina depois de tal morte.

Maria Carvalho disse...

O escritor não se enganou no santo. A frase destacada, assim solta, é que é falaciosa: quando a vi, julguei ler, com náusea, uma desculpa à mão de qualquer pedófilo. E, apelando a uma interpretação errada da religiosidade de S. Francisco, pouco certeira.

Mas, enfim, se é tão significativa, talvez possam explicar-nos o que significa sem ser preciso traduzir mais; será isso um incómodo menor?

Naturalmente esperamos uma leitura que tenha em conta que a frase se liga a um texto anterior (começa com «Und») sobre abusadores, menciona mulher e rapaz (e não mulher e homem) e junta o que parecem ser desejos sãos com fanatismo devoto.

Helena Araújo disse...

Eu enganei-me mesmo na MC!

Maria Carvalho, que é que almoçou hoje? Parece que lhe caiu um bocadinho mal.

Helena Araújo disse...

Maria Carvalho, só agora li o segundo comentário e de relance, porque ainda me arrisco a perder o avião.
Para já vou a Roma. Depois volto, e traduzo o texto.

Aviso só que me é inteiramente indiferente o que o Bodo Kirchhoff pensa do São Francisco, e não tenciono dar para este peditório. O texto dele é muito importante, mas é por outros motivos.

Helena Araújo disse...

Aviso à navegação:

computador desligado + comentários moderados => acabou-se a conversa nesta caixa de comentários, e nas outras

Peço desculpa, mas valores bem mais altos se me alevantam.

Bom fim de semana para todos!