Para visitar os museus do Vaticano pode-se comprar o bilhete na internet, mas eu confiei na minha boa estrela. E fiquei sabendo que a minha boa estrela mete folga nas manhãs de sábado. Mas deixa algum substituto a prestar serviços mínimos: na fila, de uns bons trezentos metros (não percebo nada de distâncias, estava capaz de dizer que eram dois quilómetros, mas ficamos assim), só precisei de uma hora para chegar à bilheteira. A ver se contam o truque ao meu banco, que às vezes espero uma boa meia hora para que aviem três ou quatro pessoas à minha frente (talvez esteja a exagerar um pouco).
Ao longo do dia dei-me conta que tenho de comprar um guia novo de Roma. É que nestes museus passam a vida a mudar tudo, e uma pessoa não se entende. Foi um sarilho para encontrar a colecção egípcia e o museu etrusco. A Capela Sistina, quase nem dava com ela: da última vez que a vira, estava ao lado dos frescos de Rafael; agora, puseram-na ao fundo do Museu de Arte Sacra Contemporânea. E não sei para onde levaram a Biblioteca, fartei-me de procurar os seus conteúdos. Venha um novo guia!
Comprado o bilhete, fui dizer "olá" ao Laocoon errado, arrumado a um canto da entrada. É o que ainda tem o braço direito levantado, e luta destemidamente contra as serpentes. Quando a escultura foi encontrada, faltava um braço ao conjunto, que foi "reinventado" nessa posição heróica. Mais tarde descobriram o braço em falta, e encheram-se de vergonha: está torcido para trás. No momento da escultura, Laocoon já perdeu.
Depois segui para a cave das carruagens (prioridades é comigo). Encontrei uma riquíssima carruagem que devia ser puxada por cavalos em regime de autogestão, porque não tinha lugar para o cocheiro. E tinha alguns papamobil, que por sinal são muito feios. Também gostei de ver o Mercedes com um grande trono no sítio do banco traseiro.
Aproveitando não ter os filhos comigo, segui para a Pinacoteca. Só fotografei, já à saída desse museu, este esboço de anjo de Bernini, onde até bocados de palha se vêem.
Gosto da promessa de beleza que existe nesta imperfeição. Estão outra vez a falar de nós: faz-se caminho ao andar.
Respirei fundo, e juntei-me ao bando de turistas que atravessava o pátio em direcção aos highlights dos museus. No Pátio Octogonal encontrei o Laocoon vencido, o Apolo de Belvedere que já deixara Goethe fascinado (e lembrei-me das peças que ele mandou copiar para ter consigo na casa de Weimar, que nós víramos uma semana antes na tal cimeira de blogues - como tudo se aproxima e encaixa), e também o célebre Perseu (mas não ponho aqui a fotografia porque ele estava como veio ao mundo, e eu não quero envergonhar ninguém).
Embora o Torso de Belvedere estivesse no meio de uma sala, era impossível apreciá-lo: contornei-o, envolvida numa multidão que me impedia de o ver de perto. Mais à frente, a Sala Redonda, que copia a arquitectura do Panteão. Belíssima. A multidão seguiu em velocidade moderada e constante pela direita, e eu refugiei-me num beco sem saída, ao lado esquerdo, a saborear: a monumental taça em pórfiro no meio da sala, talvez proveniente da Domus Aurea; os bustos ao lado da estátua dourada de Hércules, contando a história de amor (pedofilia?) de Adriano e Antinous; o chão de antiquíssimo mosaico (e ele não se estraga, se é diariamente pisado por dezenas de milhares de pessoas?).
Reentrei na multidão, e deixei-me levar.
Algumas salas depois, quase a chegar a umas escadas sem regresso, descobri uma discreta entrada para o museu egípcio, e de novo me escapei da onda para chegar a um oásis de sossego. Tinha vários objectos tumulares, entre os quais as caixas onde guardavam os orgãos retirados ao cadáver. Na exposição que vimos em San Francisco, no Verão passado, revelavam que todos os órgãos eram guardados, excepto o cérebro - o que nos fez rir. Neste museu, afirmam que todos os órgãos, sem excepção, eram guardados. Em que ficamos? Prefiro a versão de San Francisco, dá muito mais pano para mangas.
Havia uma múmia desembrulhada. Uma mulher, morta há mais de 3.000 anos. Deitada dentro da caixa, junto à respectiva tampa ricamente decorada: pele muito castanha, caracóis colados à pele da cabeça, as mãos muito esguias esticadas lado a lado, panos no lugar dos olhos, e um ar desolado. Encheu-me de tristeza e respeito. Tinha há muito tempo a curiosidade de ver uma destas múmias, mas o que encontrei foi uma mulher despojada e à mercê do nosso voyeurismo.
Contemplei-a quase com vergonha, como se me fosse alguma coisa a mim, como se tivesse de a proteger. Mas não consegui evitar um sorriso ao ver que os pés dela estavam mais ou menos no mesmo estado que os meus...
E agora olhem para a imagem que se segue, e digam lá se isto não é uma grande malcriadice? Aqueles egípcios, com o seu ar tão aprumadinho, olhando para a frente enquanto viravam a cara para o lado - tudo muito bem, segundo os desígnios dos Deuses, e tal - e afinal... grandes maganões.
Dos egípcios para os etruscos. Mais um museu praticamente vazio (provavelmente sinal de que a minha boa estrela tinha regressado da folga).
O guia áudio explicava que esse povo respeitava muito as mulheres, e que por causa disso até arranjaram sarilhos com os romanos. Mas eu lembrei-me do que vinha no meu guia turístico desactualizado (Conselho às raparigas que viajam sozinhas: se algum rapaz vos começar a atazanar, o melhor é pedir ajuda a una mamma italiana. Se não houver nenhuma por perto, então a um polícia. Mas a autoridade da mamma é de longe superior à do polícia.) e concluí que algo da cultura etrusca terá transvasado para as culturas vizinhas e sobrepostas. Ia ouvindo enquanto avançava pelas salas com peças de ourivesaria muito belas, até que cheguei a uma galeria onde havia uma escada em caracol para três salas no piso superior. Ainda hesitei, pensando nos pés da múmia iguais aos meus, mas a curiosidade (e o facto de não ter filhos comigo) foi mais forte. Subi - e eis que na milésima ducentésima quinquagésima segunda sala, mais capela menos capela, daquele conjunto de museus, encontrei promessas em terracota semelhantes às que se vêem em qualquer capela portuguesa de santo milagroso. Não me digam que os etruscos também vieram inspirar os lusitanos? Pois haviam de ter deixado entre nós mais respeitinho pela mamma, dava-me jeito agora que sou mãe de adolescentes.
Também tinha um armário cheio de pernas e pés, mas estava numa secção de difícil acesso. Contudo, penso que esta fotografia basta para terem uma ideia das doenças que afligiam os etruscos.
Ao sair desse museu, dei-me conta que os guardas estavam a fechar o acesso à escada em caracol. Pausa para o almoço? O problema, com esta flexibilidade, é que não há guia turístico que se consiga manter actualizado mais que um par de horas!
À entrada da galeria dos mapas, um turista apontou a máquina para o ar e disparou. Às cegas. Olhei para as pinturas no tecto: tinha fotografado as cenas de pernas para o ar. Mas como em casa também não vai ver o que fez, não tem importância.
Continuei para os aposentos do Papa Júlio II, onde estão os frescos de Rafael, especialmente aquele tornado famoso pelo Bios Politikos, que se senta neste banquinho, junto às pinturas, para escrever os seus posts (tenho a certeza).
De Rafael para Arte Sacra Moderna, no apartamento do Bórgia (não contem a ninguém). O museu surgiu por iniciativa do Papa Paulo VI, ao dar-se conta que a Religião e a Arte andavam desinteressadas uma da outra. Encontram-se lá muitos pintores famosos, algumas boas esculturas, e este quadro de Alice Lok Cahana, "No Names, s.d.", oferecida pela artista a Bento XVI, e que me foi um murro no estômago.
(para ver melhor, carregar na fotografia)
E depois veio a Capela Sistina, cheia de turistas, para variar. Mas sobre ela não vou dizer nada porque já toda a gente sabe tudo.
Seguidamente, tentei encontrar as bibliotecas, mas só dei com as salas. Lindas, lindas. Essas salas mereciam bem um dia, para saborear cada uma delas e para identificar as cenas pintadas nas paredes. Como esta, contando os esforços de mover um enorme obelisco umas centenas de metros, porque o queriam exibir na praça da catedral de São Pedro.
Um obelisco que, diga-se de passagem, fora trazido do Egipto sem dificuldades de maior 1.500 anos antes...
Para mim, uma novidade: há lojas de museu nas próprias galerias. A gente tem de desviar-se dos guarda-chuvas todos pinocas e do expositor de postais para poder ver um detalhe de um fresco na parede, um canto de um quadro famoso...
Deve haver pelo menos umas dez lojas assim.
O que - ó pra mim a defender a Santa Madre de unhas e dentes - se compreende facilmente: é um serviço ao turista. Que no fim desta maratona cultural deve estar demasiado estafado para entrar numa loja onde se encontram os outros 30.000 visitantes do dia (talvez mais, talvez menos).
Saí dos museus com pena. Com a sensação que não tinha conseguido ver, realmente ver, nem um centésimo do que eles oferecem. Lá terei de regressar a Roma...
Estava na hora de ir ter com o Joachim às escadas da Praça de Espanha. Encontrei-o junto à igreja dos franceses, e fomos descansar um pouco no café instalado num terraço alto, sobre o espectáculo de vida que acontece naquelas escadas. Mas não vi nenhuma mamma etrusca a defender turistas loiras das investidas dos rapazes italianos. Depois demos uma volta para ver a gracinha do Palazzo Zuccari na Via Gregoriana, e mais um episódio do conflito Bernini/Borromini: o Palazzo della Congregazione di Propaganda Fide, com uma fachada feita por um, e outra, completamente diferente, feita pelo outro.
Como é que se diz? Estes romanos são loucos.
Seguiu-se um belíssimo jantar na casa da Norma, com um spaghetti artesanal feito só para connaisseurs e vendido em diminutas quantidades (e como se nota a diferença!). Também ficamos a saber quanto custam os sapatinhos Louboutin, mas nem às paredes confesso. E parece que são muito desconfortáveis.
Ora bem: se eu gastasse aquele dinheiro com sapatos, tinham de ser não apenas bonitos, como incrivelmente resistentes. E tinham de dar-me a sensação de andar descalça sobre nuvens.
Mas desconfio que nasci mulher com defeito de fabrico: há coisas que não entendo.
3 comentários:
Para a próxima vai em Novembro. É capaz de chover todos os dias mas andas quase sozinha por todo o lado, até nas infindáveis salas dos Museus do Vaticano (pelo menos, assim era no meu tempo).
Os ex-votos são muito curiosos. Para serem iguais aos que se vendem em Fátima só precisavam de ser de cera.
E mais: o quadro de Alice Lok Cahana há-de ter sido um murro no estômago para o próprio Bento XVI.
P.S. Agora percebi a dificuldade em encontrares sapatos em Roma.
Pareceu-me pelas descrições que o segundo dia foi mais proveitoso do que o primeiro, embora igualmente cansativo.
Terei em conta essas alterações geográficas a próxima vez que me embrenhar no Vaticano.
Os Louboutins desconfortáveis? Ora bolas, eu que me preparava para pedir uns no Dia da Mãe ;-)
Pois eh, Gi: os Louboutin sao como as uvas da raposa - verdes.
E vermelhos na sola, o que nao combina nada bem...
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